terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Como nasceram as estrelas



Como nasceram as estrelas
Pois é, todo mundo pensa que sempre houve no
mundo estrelas pisca-pisca. Mas é erro. Antes os índios
olhavam de noite para o céu escuro — e bem escuro
estava esse céu. Um negror. Vou contar a história
singela do nascimento das estrelas.
Era uma vez, no mês de janeiro, muitos índios. E
ativos: caçavam, pescavam, guerreavam. Mas nas
tabas não faziam coisa alguma: deitavam-se nas redes
e dormiam roncando. E a comida? Só as mulheres
cuidavam do preparo dela para terem todos o que
comer.
Uma vez elas notaram que faltava milho no cesto
para moer. Que fizeram as valentes mulheres? O
seguinte: sem medo enfurnaram-se nas matas, sob um
gostoso sol amarelo. As árvores rebrilhavam verdes e
embaixo delas havia sombra e água fresca. Quando
saíam de debaixo das copas encontravam o calor,
bebiam no reino das águas dos riachos buliçosos. Mas
sempre procurando milho porque a fome era daquelas
que as faziam comer folhas de árvores. Mas só
encontravam espigazinhas murchas e sem graça.
— Vamos voltar e trazer conosco uns curumins.
(Assim chamavam os índios as crianças.) Curumim dá
sorte.
E deu mesmo. Os garotos pareciam adivinhar as
coisas: foram retinho em frente e numa clareira da
floresta — eis um milharal viçoso crescendo alto. As
índias maravilhadas disseram: toca a colher tanta
espiga. Mas os gatinhos também colheram muitas e
fugiram das mães voltando à taba e pedindo à avó que
lhes fizesse um bolo de milho. A avó assim fez e os
curumins se encheram de bolo que logo se acabou. Só
então tiveram medo das mães que reclamariam por
eles comerem tanto. Podiam esconder numa caverna a
avó e o papagaio porque os dois contariam tudo. Mas
— e se as mães dessem falta da avó e do papagaio
tagarela? Aí então chamaram os colibris para que
amarrassem um cipó no topo do céu. Quando as índias
voltaram ficaram assustadas vendo os filhos subindo
pelo ar. Resolveram, essas mães nervosas, subir atrás
dos meninos e cortar o cipó embaixo deles.
Aconteceu uma coisa que só acontece quando a
gente acredita: as mães caíram no chão,
transformando-se em onças. Quanto aos curumins,
como já não podiam voltar para a terra, ficaram no céu
até hoje, transformados em gordas estrelas brilhantes.
Mas, quanto a mim, tenho a lhes dizer que as estrelas
são mais do que curumins. Estrelas são os olhos de
Deus vigiando para que corra tudo bem. Para sempre.
E, como se sabe, “sempre” não acaba nunca.


Clarice Lispector
Doze Lendas Brasileiras (Narração de Rosita Thomas Lopes) 



terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Torre Azul

É preciso construir uma torre
- uma torre azul para os suicidas.
Têm qualquer coisa de anjo esses suicidas voadores,
qualquer coisa de anjo que perdeu as asas.
É preciso construir-lhes um túnel
- um túnel sem fim e sem saída
e onde um trem viajasse eternamente
como uma nave em alto-mar perdida.

É preciso construir uma torre…
É preciso construir um túnel…
É preciso morrer de puro,
puro amor!…


Mario Quintana

(Poema do livro Baú de Espantos, retirado de Poesia Completa - Rio de Janeiro
Nova Aguilar, 2005, p. 587

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Noite da Saudade

A Noite vem poisando devagar
Sobre a Terra, que inunda de amargura...
E nem sequer a benção do luar
A quis tornar divinamente pura...
Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!
Porque és assim tão escura, assim tão triste?!
é que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!
Saudade que eu sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite! ... Ou de ninguém! ...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!



Florbela Espanca


Poemas Selecionados - Florbela Espanca - Ciberfil Literatura Digital
Março de 2002 - Permitida a distribuição

domingo, 20 de janeiro de 2013

Por Não Estarem Distraídos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector

(do livro A Descoberta do Mundo: crônicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 508)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Confidência do Itabirano



Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. 




A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói! 



Carlos Drummond de Andrade



(Poema digitado e conferido por Fabio Rocha em 17 de setembro de 2012, 
publicado em Antologia Poética – 12a edição – 
Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, ps. 36 e 37)

sábado, 12 de janeiro de 2013

A namorada

Havia um muro alto entre nossas casas.
Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-mail.
O pai era uma onça.
A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por
um cordão
E pinchava a pedra no quintal da casa dela.
Se a namorada respondesse pela mesma pedra
Era uma glória!
Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da goiabeira
E então era agonia.
No tempo do onça era assim.


Manoel de Barros
Texto extraído do livro "Tratado geral das grandezas do ínfimo"
Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, pág. 17.
 






sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Canto Nativo

Paisagem, por Aldemir Martins (-2006), AST.

 
 
 
 
 
Paisagem,
por Aldemir Martins
(CE 1922- SP 2006), AST.


 
 
 
 
 
Quando eu morrer,
você rasgue um pedaço deste céu
E faça dele a minha mortalha.
Quando eu morrer,
você cave um torrão de terra virgem
E faça dele o meu travesseiro.
Quando eu morrer,
você arranque o Cruzeiro do Sul
E faça das estrelas meus círios.
……………………………………………………………………..
Quando eu morrer,
você corte um ramo de pitangueiras
E cruze, sobre ele, as minhas mãos.
Quando eu morrer,
você plante sobre a minha sepultura
uma palmeira de ouricuri.
………………………………………………………………………
Quando eu morrer,
você diga aos que perguntarem por mim
Que eu morri como nasci:
Brasileiro,
Brasileiro,
Brasileiro. 

Jaime d’Altavila, pseudônimo de Anfilófio Melo (AL 1895-1970),
formado em Direito, novelista, cronista, poeta, ensaísta, historiador.
Fundador da Academia Alagoana de Letras.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Os dois irmãos





Meninos jogando bilboquê, sd
Belmiro de Almeida ( Brasil, 1858-1935)
óleo sobre tela, 40x30cm
Museu de Arte de São Paulo










Eu conheço dois meninos
que em tudo são diferentes.
Se um diz: “Dói-me o nariz!”
o outro diz: “Ai, meus dentes!”
—–
Se um quer brincar em casa,
o outro foge para o monte;
e se este a casa regressa,
já o outro foi para a fonte.
—–
É difícil conviver
com tanta contradição.
Quando um diz: “Oh, que calor! ”,
“Que frio!” - diz o irmão.
—-
Mas quando a noitinha chega
com suas doces passadas,
pedem à mãe que lhes conte
histórias de Bruxas e Fadas.
—–
E quando o sono esvoaça
por sobre o dia acabado,
dizem “Boa noite, mãe!”
e adormecem lado a lado.




Maria Alberta Rovisco Garcia Menéres de Melo e Castro (Portugal, 1930) nasceu na cidade de Vila Nova de Gaia. É professora, jornalista e escritora. Sua obra inclui poesia, contos, hisstórias em quadrinhos, teatro, novelas, e adaptação de clássicos da literatura.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

enquanto batemos ponto

é preciso ir
e ver no passo
além

para que
medirmos anos?

enquanto uma eternidade sem palavras
nos observa
sem olhos

para que tempo
(esse tempo pequeno, pessoal e verbal)


quando um chão de folhas mortas
árvores antigas
musgos desde sempre
lagartos ágeis
pássaros frágeis
sol verde
e raras flores perdidas? 



terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A Lua foi ao Cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava para ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!



Paulo Leminski Filho (PR 1944 — PR 1989)
Escritor, poeta, tradutor e professor brasileiro.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O homem cuja orelha cresceu

Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora-extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.

Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero.

Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.

Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hospedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.

Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.

E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.
E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: "Por que o senhor não mata o dono da orelha?" 


Ignácio de Loyola Brandão O texto acima foi extraído do livro 
"Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão", 
seleção de Deonísio da Silva, Global Editora 
 São Paulo, 1993, pág. 135.

domingo, 6 de janeiro de 2013

A Chave do Enigma

(trechos)
Fernando Sabino
Minas

O TURISTA perguntou ao mineiro por que o Estado de Minas Gerais é conhecido como "As Alterosas".

— Sei não — foi a resposta. — Vai ver que é por causa das mulheres mineiras, que são muito alterosas. Basta uma para dar logo alteração.


CAMINHANDO pelas ruas de São João del Rei. Uma dor de cabeça renitente pede com urgência um comprimido. Se fosse dor de dente, pediria Cera Dr. Lustosa. Ainda há em São João quem se lembre do próprio Dr. Lustosa, criador da milagrosa cera, cujo cheiro característico me vem da infância. Não encontro nenhuma farmácia aberta. Abordo um passante, que me informa polidamente haver uma de plantão perto da Estação Rodoviária.

— E é muito longe a Rodoviária? — pergunto.

— É — responde ele apenas, e prossegue o seu caminho.


SABARÁ é a terra da jabuticaba. De repente, em certa época do ano, Belo Horizonte se esvaziava: todo mundo vinha a Sabará chupar jabuticabas, que eram vendidas no pé. O freguês chupava quantas quisesse, até cair do galho. Só não podia levar nenhuma.

Há algum tempo um velho coronel mineiro, intrigado, perguntava:

- Todo mundo agora está indo para a Europa: o Juca já foi, o seu Chiquinho também, o Zé da Sá Rita está de mala pronta... É tempo de jabuticaba lá?


NO QUE eu depender de informações desses meus conterrâneos, acabo indo parar na casa da mãe Joana. Pergunto a este outro, no posto de gasolina, a distância dali até Diamantina.

— Não é muito perto não. Mas também não é longe — informa ele, sério.

— Quanto tempo vou levar daqui até lá?

— É conforme, uai. Se correr muito, leva pouco, se correr pouco, leva muito.


OS BECOS em Diamantina conservam os nomes da época do ouro e dos diamantes: Beco das Caveiras, das Gaivotas, da Tasca, do Rapacuia, da Paciência, do Pinta-Ratos. Cada um com sua motivação histórica: o do Pinta-Ratos, por exemplo, é homenagem a um pintor que, para se vingar da Irmandade que lhe devia um dinheiro, trancou-se na sacristia da igreja e pintou dezenas de ratos em suas paredes; o da Paciência era usado para despejo do lixo e pelos tropeiros, que ali satisfaziam suas necessidades — paciência houvesse para passar por ali.


SE sou mineiro? Bem, é conforme.

Tudo é conforme: sabe-se lá por que estão perguntando? ? O que é ser mineiro, afinal? Basta ter nascido em Minas? Manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado — tudo isso junto. Experimente perguntar-lhe com delicadeza:

— Como é mesmo o seu nome todo?

Ele responderá, também delicado:

— Fale a parte que você sabe.

Se por sua vez não perguntar:

— Por que você quer saber?


TUDO que me ocorre dizer sobre o mineiro já foi dito, contado e recontado. Só mesmo me valendo mineiramente do que já escrevi sobre o enigma de Minas:

"Dentro de mim uma corrente de nomes e evocações fluindo desde as minhas origens, como o Rio das Velhas no seu leito de pedras, entre cidades imemoriais... Prefiro estancá-la no tempo, a exaurir-me em impressões arrancadas aos pedaços e que aos poucos descobririam o que resta de precioso em mim - o mistério de minha terra, desafiando-me como a esfinge com seu enigma: decifra-me ou devoro-te.

Prefiro ser devorado."

Fernando Sabino
 Trechos extraídos de "A Chave do Enigma", 
Editora Record - Rio de Janeiro, 1999.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Soberania

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que
tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo
do vento escorregava muito e eu não consegui
pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso
carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos
deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado
e disse que eu tivera um vareio da imaginação.
Mas que esses vareios acabariam com os estudos.
E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li
alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio.
E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria
das idéias e da razão pura. Especulei filósofos
e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande
saber. Achei que os eruditos nas suas altas
abstrações se esqueciam das coisas simples da
terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo
— o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase:
A imaginação é mais importante do que o saber.
Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei
um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu
olho começou a ver de novo as pobres coisas do
chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E
meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam
o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no
corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas
podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as
próprias asas. E vi que o homem não tem soberania
nem pra ser um bentevi.


Manoel de Barros

 Texto extraído do livro (caixinha) "Memórias Inventadas - A Terceira Infância", 
Editora Planeta - São Paulo, 2008, tomo X, com iluminuras de Martha Barros.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Feliz Ano Novo

Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.

Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.

Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.

Vai mijar noutro lugar, tô sem água.

Pereba saiu e foi mijar na escada.

Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.

Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?

Tô morrendo de fome, disse Pereba.

De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.

Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.

Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.

Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.

As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?

Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.

Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.

Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.

Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?

Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.

Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.

No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.

As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.

Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.

Ela tava nua, disse Pereba.

Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.

Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.

Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.

Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.

Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.

Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.

Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.

Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.

As ferramentas dele tão todas aqui.

Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.

Eu ri.

Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.

Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?

Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.

Fumamos. Esvaziamos uma pitu.

Posso ver o material?, disse Zequinha.

Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.

Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.

O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.

Já, eu disse, está lá em cima.

A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.

Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.

É antiga mas não falha, eu disse.

Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.

Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.

Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.

Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.

Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.

É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.

É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.

Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.

Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.

Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?

Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.

Cara importante faz o que quer, eu disse.

É verdade, disse Zequinha.

Ficamos calados, fumando.

Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.

O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?

Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.

Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.

O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.

Que casa? Você tem alguma em vista?

Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.

Coloquei a lata de goiabada numa saca ele feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.

Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.

Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.

É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!

Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.

Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.

Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.

Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.

Crianças?

Estão em Cabo Frio, com os tios.

Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.

Gonçalves?, disse Pereba.

É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.

Inocêncio, amarra os barbados.

Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.

Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.

Pereba desceu as escadas sozinho.

Cadê as mulheres?, eu disse.

Engrossaram e eu tive que botar respeito.

Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.

Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.

Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.

Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.

Podem também comer e beber à vontade, ele disse.

Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.

Como é seu nome?

Maurício, ele disse.

Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?

Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.

Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.

Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.

Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.

Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.

Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.

Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.

Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.

Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.

Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.

Eu não disse? Zequinha esfregou ó ombro dolorido. Esse canhão é foda.

Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.

Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.

E você... Inocêncio?

Acho que vou papar aquela moreninha.

A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.

Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.

Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.

Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.

Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.

Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.

Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?

Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.

Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.

Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.

Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.

Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo. 





Rubem Fonseca
 
 
 
Texto extraído do livro 
"Feliz Ano Novo",
Editora Artenova
Rio de Janeiro, 1975.