terça-feira, 30 de julho de 2013

A luta amorosa com as palavras

Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Há! Mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas… Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a eternidade.

Nasci do rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro – o mesmo tendo acontecido a Sir Isaac Newton! Excusez du peu.

Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que nunca acho que escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! Sou é caladão, introspectivo. Não sei por que sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros ?

Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante 5 anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Veríssimo – que bem sabem (ou souberam), o que é a luta amorosa com as palavras.




(texto escrito pelo poeta para a revista “Isto É” de 14/11/1984)
Mario Quintana





( Mario Quintana )

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Do Livro do Desassossego

"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo.
Não sei onde me levará, porque não sei nada.
Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros.
Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo aos que são, os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo aos que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim.
Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero."



Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)

domingo, 28 de julho de 2013

Sei





Sabe,
Quando a gente tem vontade de encontrar
A novidade de uma pessoa
Quando o tempo passa rápido
Quando você está ao lado dessa pessoa
Quando dá vontade de ficar nos braços dela
E nunca mais sair…

Sabe,
Quando a felicidade invade
Quando pensa na imagem da pessoa
Quando lembra que seus lábios encontraram
Outros lábios de uma pessoa
E o beijo esperado ainda está molhado
E guardado ali em sua boca
Que se abre e sorri feliz
Quando fala o nome daquela pessoa
Quando quer beijar de novo muitos lábios
Desejados da sua pessoa
Quando quer que acabe logo a viagem
Que levou ela pra longe daqui…


Sabe,
Quando passa a nuvem brasa
Ar de coco, sopro do ar que traz essa pessoa
Quando quer ali deitar, se alimentar
E entregar seu corpo pra pessoa
Quando pensa porque não disse a verdade
É que eu queria que ela estivesse aqui…



Sabe,
Quando a felicidade invade
Quando pensa na imagem da pessoa
Quando lembra que seus lábios encontraram
Outros lábios de uma pessoa
E o beijo esperado ainda está molhado
E guardado ali em sua boca
Que se abre e sorri feliz
Quando fala o nome daquela pessoa
Quando quer beijar de novo muito, muito, muito, muito, muito, muito, muito os lábios da sua pessoa
Quando pensa porque não disse a verdade
É que eu queria que ela estivesse aqui…

Sei…
Eu sei.



Nando Reis

sábado, 27 de julho de 2013

Vapor Barato - Flor da Pele




Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de anéis
Vou descendo por todas as ruas
E vou tomar aquele velho navio
Eu não preciso de muito dinheiro
Graças a deus
E não me importa, honey

Minha honey baby
Baby, honey baby
Oh, minha honey baby
Baby, honey baby
Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu tô indo embora
Talvez eu volte
Um dia eu volto
Mas eu quero esquecê-la, eu preciso
Oh, minha grande
Ah, minha pequena
Oh, minha grande obsessão
Oh, minha honey baby
Baby, honey baby
Oh, minha honey baby
Honey baby, honey baby, ah 



Ando tão à flor da pele
Que qualquer beijo de novela me faz chorar
Ando tão à flor da pele
Que teu olhar flor na janela me faz morrer
Ando tão à flor da pele
Que meu desejo se confunde com a vontade de não ser (baby)
Ando tão à flor da pele
Que a minha pele tem o fogo do juízo final (honey baby)
Um barco sem porto sem rumo sem vela cavalo sem sela
Um bicho solto um cão sem dono um menino um bandido
Às vezes me preservo noutras suicido
Baby, honey baby, baby, baby, baby, baby, baby
Oh, minha honey baby
Honey baby, honey baby
Baby, baby, baby, baby, baby
Ando tão à flor da pele
Que qualquer beijo de novela me faz chorar
Ando tão à flor da pele
Que teu olhar flor na janela me faz morrer
Ando tão à flor da pele
Que meu desejo se confunde com a vontade de não ser
Ando tão à flor da pele
Que a minha pele tem o fogo do juízo final
Baby, honey baby
Honey baby, baby, baby, baby, baby
Oh, minha honey baby
Honey baby, honey baby
Baby, baby, baby, baby
Ando tão à flor da pele
Que qualquer beijo de novela me faz chorar
Ando tão à flor da pele
Que teu olhar flor na janela me faz morrer
Ando tão à flor da pele
Que meu desejo se confunde com a vontade de não ser
Ando tão à flor da pele
Que a minha pele tem o fogo do juízo final
Baby 


Zeca Baleiro 

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Só Louco



Só louco
Amor como eu amei
Só louco
Quis o bem que eu quis

Ah!Insensato coração
Porque me fizeste sofrer
Porquê de amor para entender
É preciso amar, porque...

Só louco
Amor como eu amei
Só louco
Quis o bem que eu quis

Ah! Insensato coração
Porque me fizeste sofrer
Porquê de amor para entender
É preciso amar, porque ...

Só louco
Amor como eu amei
Só louco
Quis o bem que eu quis

Ah!Insensato coração
Porque me fizeste sofrer
Porquê de amor para entender
É preciso amar,
Porque só louco
Só louco
Só louco, louco, louco



Dorival Caymmi
Gravado no dia 17 de julho de 1997 
no Memorial da América Latina

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Um Trem para as Estrelas




São sete horas da manhã
Vejo o Cristo da janela
O sol já apagou a luz
E o povo lá embaixo espera
Nas filas de pontos de ônibus
Procurando aonde ir


São todos seus cicerones
Correm pra não desistir
Dos seus salários de fome
E a esperança que ele têm
Nesse filme como extras
Todos querem se dar bem


Num trem para as estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Num trem para as estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas


Estranho o teu Cristo, Rio
Que olha tão longe, além
Com os braços sempre abertos
Mas sem proteger ninguém
Eu vou forrar as paredes
Do meu quarto de miséria
Com manchetes de jornal
Pra ver que não é nada sério
Eu vou dar o meu desprezo
Pra você que me ensinou
Que a tristeza é uma maneira
Da gente se salvar depois


Num trem para as estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Num trem para as estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas...



(Cazuza / Gilberto Gil)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Poema



Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento a tempo
Eu acordei com medo e procurei no escuro
Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo
Hoje eu acordei com medo, mas não chorei
Nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via um infinito sem presente
Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo,
era uma coisa sua que ficou em mim, que não tem fim
De repente a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu
Há minutos atrás 

Cazuza - Frejat

terça-feira, 23 de julho de 2013

Sob Medida





Se você crê em Deus
Erga as mãos para os céus 

E agradeça 
Quando me cobiçou 
Sem querer acertou 
Na cabeça 
Eu sou sua alma gêmea 
Sou sua fêmea 
Seu par, sua irmã 
Eu sou seu incesto 
(seu jeito, seu gesto) 
Sou perfeita porque 
Igualzinha a você 
Eu não presto 
Eu não presto 
Traiçoeira e vulgar 
Sou sem nome e sem lar 
Sou aquela 
Eu sou filha da rua 
Eu sou cria da sua 
Costela 
Sou bandida 
Sou solta na vida 
E sob medida 
Pros carinhos seus 
Meu amigo 
Se ajeite comigo 
E dê graças a Deus 
Se você crê em Deus 
Encaminhe pros céus 
Uma prece 
E agradeça ao Senhor 
Você tem o amor 
Que merece


(Chico Buarque)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Só de estar em tua companhia

Só de estar em tua companhia
Meu coração já começou mudar
Passei a ver aquilo que não via
Tua presença vai me transformar

E quando eu te buscar
Eu vou me desligar
Desta Cidade Morta,
Desta Humanidade Torta
Quero ser alguém que ora,
Que na vida te adora
Tua presença vai me transformar

E quando eu meditar
Na tua perfeição
Ver tua beleza,
Toda esta grandeza...
Quero ser alguém profundo,
Que não ame este mundo
Tua presença vai me transformar

  Gerson Borges

Eu Te Amo




Ah, se já perdemos a noção da hora 
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Ah, se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas 

Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão 

Se na bagunça do teu coracão
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido 

Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos 

Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás te fazendo de tonta 

Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir
Ah!... 



Eu Te Amo
(Tom Jobim - Chico Buarque)

domingo, 21 de julho de 2013

Cadê Você

 

Me dê noticia de você 
Eu gosto um pouco de chorar
A gente quase não se vê 

Me deu vontade de lembrar

Me leve um pouco com você 
Eu gosto de qualquer lugar
A gente pode se entender 

E não saber o que falar

Seria um acontecimento 

Mas lógico que você some
No dia em que o seu pensamento 

Me chamou

Eu chamo o seu apartamento 

Não mora ninguém com esse nome
Que linda a cantiga do vento 

Já passou

A gente quase não se vê 

Eu só queria me lembrar
Me dê noticia de você 

Me deu vontade de voltar

Me dê noticia de você 

Eu gosto um pouco de chorar
A gente quase não se vê 

Me deu vontade de lembrar

Me leve um pouco com você 

Eu gosto de qualquer lugar
A gente pode se entender 

E não saber o que falar

Seria um acontecimento 

Mas lógico que você some
No dia em que o seu pensamento 

Me chamou

Eu chamo o seu apartamento 

Não mora ninguém com esse nome
Que linda a cantiga do vento 

Já passou

A gente quase não se vê 

Eu só queria me lembrar
Me dê noticia de você 

Me deu vontade de voltar


Cadê Você
(João Donato / Chico Buarque)

sábado, 20 de julho de 2013

O medo de errar

A gente é a soma das nossas decisões. 


É uma frase da qual sempre gostei, mas lembrei dela outro dia num local inusitado: dentro do super. Comprar maionese, band-aid e iogurte, por exemplo, hoje requer expertise. Tem maionese tradicional, light, premium, com leite, com ômega 3, com limão, com ovos “free range”. Band-aid, há de todos os formatos e tamanhos, nas versões transparente, extratransparente, colorido, temático, flexível. 

Absorvente com aba e sem aba, com perfume e sem perfume, cobertura seca ou suave. Creme dental contra o amarelamento, contra o tártaro, contra o mau hálito, contra a cárie, contra as bactérias. É o melhor dos mundos: aumentou a diversificação. E com ela, o medo de errar. 

Assim como antes era mais fácil fazer compras, também era mais fácil viver. Para ser feliz, bastava estudar (magistério para as moças), fazer uma faculdade (Medicina, Engenharia ou Direito para os rapazes), casar (com o sexo oposto), ter filhos (no mínimo dois) e manter a família estruturada até o fim do dias. Era a maionese tradicional. 

Hoje, existem várias “marcas” de felicidade. Casar, não casar, juntar, ficar, separar. Homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher. Ter filhos biológicos, adotar, inseminação artificial, barriga de aluguel – ou simplesmente não tê-los. 

Fazer intercâmbio, abrir o próprio negócio, tentar um concurso público, entrar para a faculdade. Mas estudar o quê? Só de cursos técnicos, profissionalizantes e universitários, há centenas. Computação Gráfica ou Informática Biomédica? Editoração ou Ciências Moleculares? Moda, Geofísica ou Engenharia de Petróleo? 

A vida padronizada podia ser menos estimulante, mas oferecia mais segurança, era fácil “acertar” e se sentir um adulto. Já a expansão de ofertas tornou tudo mais empolgante, só que incentivou a infantilização: sem saber ao certo o que é melhor para si, surgiu o medo de crescer. 

Todos parecem ter 10 anos menos. Quem tem 17, age como se tivesse 7. Quem tem 28, parece ter 18. Quem tem 39, vive como se fossem 29. Quem tem 40, 50, 60, mesma coisa. Por um lado, é ótimo ter um espírito jovial e a aparência idem, mas até quando se pode adiar a maturidade? 

Só nos tornamos verdadeiramente adultos quando perdemos o medo de errar. Não somos apenas a soma das nossas escolhas, mas também das nossas renúncias. Crescer é tomar decisões e, depois, conviver pacificamente com a dúvida. Adolescentes prorrogam suas escolhas porque querem ter certeza absoluta – errar lhes parece a morte.

Adultos sabem que nunca terão certeza absoluta de nada, e sabem também que só a morte física é definitiva. Já “morreram” diante de fracassos e frustrações, e voltaram pra vida. Ao entender que é normal morrer várias vezes numa única existência, perdemos o medo – e finalmente crescemos. 


Martha Medeiros
Jornal Zero Hora, 25 de setembro de 2011.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Dia Cinzento



Que dia tão cinzento
Que amargura a minha alma
Que me guarda numa lamúria
Que me cega e provoca sufoco
Que me mata e me desvia
Dos dias da alegria tão desejada.

Passei horas de sufoco
Enrolado na escuridão
Agarrado a pensamentos
Que bem no fundo do coração
Teimam em manifestar-se
E fazerem-se sentir.

Sempre que de olhos fechados
Te tentava esquecer
A saudade invadia meu corpo
E teimavas em aparecer
Iluminando o meu caminho
Tornando-me um novo ser.

As mágoas por mim passaram
Preso nesta solidão
Pensando em quando te rever
E nos quadros da minha paixão
Escrevia o teu nome na carne
E também no coração.

Teu sorriso nunca será esquecido
Pois tinha calor e emoção
E teus olhos cintilantes
Dão novo brilho a este ser
Que outrora se houvera esquecido
De quão bom era viver.

E solitário por natureza
Embriaguei-me no prazer
Das lembranças da tua beleza
E no charme que te envolve
E de coração fragilizado
Imaginei-te mesmo a meu lado.

Que bom sonhar e ser amado
Que bom saber que a vida volta
Pois não se pode perder
Sem ser declarada tal derrota
E enquanto as forças nos erguerem
Lutaremos sem igual.

Mas a teimosia da realidade
Fez questão de me acordar
E perceber que a vida é dura
E tem obstáculos a percorrer
Que nem sempre são vitórias
Tantas as vezes do perder.

Por isso o dia cinzento
Fez questão em me prender
Entregue à memória
Do que poderia acontecer
Se juntos não pudéssemos ficar
Sem tão pouco o tentar.

Rendido ao pensamento
Passei horas a chorar
Lágrimas que parecem sangue
Mas que insistem em rasgar
E que no percorrer do meu corpo
Sobre a alma se vão deitar.

Foi um dia…
Dia cinzento
Dia frio e mal amado
Dia eternamente amaldiçoado
Qual presente envenenado
Feito para me fazer sofrer.


Paulo Gomes
do Livro Momentos

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Na boca dos vizinhos

Ao chegar à caixa do supermercado, a moça que ali atendia me falou: 
“É verdade que o senhor vai parar de escrever poesia? 
Não faça isso, poeta, por favor!”. Não acreditei no que ouvira. Aquela moça, que mal conheço e passa o dia a cobrar pelas compras dos fregueses, sabe quem sou eu e lamenta que eu não vá mais escrever poesia! “Mas quem lhe disse isso”, perguntei, e ela: “Li naquele jornalzinho que o pessoal distribui de graça”.

Só então me lembrei da entrevista que havia dado a um jornal de bairro e que fora publicada com um título mais ou menos assim: “Gullar diz que não vai mais escrever poesia”.

- Não foi bem isso que eu disse –expliquei à moça da caixa. Afirmei foi que talvez não venha mais a escrever poesia. Não disse que decidi não escrever mais.

Peguei minhas compras e me dirigi para casa, um tanto surpreso com aquela conversa. A moça não apenas deu importância ao que saíra no jornal, como lamentara minha suposta decisão. Jamais pensara que minha poesia interessasse a uma caixa de supermercado. Na minha visão equivocada, às pessoas do povo o que importa são as novelas de televisão. Daí o meu espanto.

Mas o espanto não parou aí. Dias depois, ao atravessar a rua, uma senhora me interpela e me diz que seu filho de dez anos ficara muito triste ao saber que eu ia parar de escrever poesia. “Ele sabe seus poemas de cor.” Expliquei-lhe que não foi aquilo o que disse ao repórter. “Diga a seu menino que a poesia sopra onde e quando quer, ninguém manda nisso.”

E segui meu caminho, feliz de saber que um garoto de dez anos ama meus poemas. Só me resta agora pedir às Musas que me ajudem e não me deixem parar de fazer poemas.

De qualquer modo, vendo que a notícia se alastrara e que, para minha surpresa, há quem deseje que eu continue a escrever poesia, sinto-me na obrigação de esclarecer o assunto. A coisa
é a seguinte: escrever ou não escrever poesia não é coisa que se decida. Logo, não foi o que eu declarei àquela repórter do jornal de bairro.

Na verdade, sempre que termino de escrever um livro de poemas, tenho a impressão de que não vou escrever mais, de que a fonte secou. A primeira vez que isso aconteceu foi com “A Luta Corporal”, cujos últimos poemas datam do começo de 1953.

Ao escrever o poema “Roçzeiral”, em que desintegrava a linguagem, achei que não iria escrever mais. Naquela vez, pelo menos havia uma razão efetiva, já que, ao desintegrar o discurso poético, tornava inviável seguir escrevendo. Mas a coisa se repetiu, anos depois, quando publiquei “Barulhos”, quando publiquei “Muitas Vozes” e, recentemente, ao dar por concluído “Em Alguma Parte Alguma”.

Creio que isso se deve ao fato de que não planejo nada, muito menos meus livros de poemas. De repente, descubro um tema novo, um veio que passo a explorar até esgotá-lo. Isso demora anos, porque, também, ao concluir cada poema, tenho a impressão de que o veio se esgotou.

Sim, pois do contrário, não daria por findo o poema. Mas chega um momento em que o veio se esgota mesmo, percebo que não há mais nada a retirar dali. Dou o livro por concluído e aí vem a sensação de que não escreverei mais. Sim, porque se não descobrir outro veio, não terei o que escrever. E enquanto não o descubro, essa sensação se mantém até que, de repente, um belo dia, a poesia volta a me iluminar.

Os fatos têm mostrado que acabo por descobrir um veio novo e volto a escrever. Pelo menos foi o que aconteceu até então. Sucede que o último poema do meu último livro “Em Alguma Parte Alguma” data de novembro de 2009, e até hoje, três anos e sete meses depois, não voltei a fazer nenhum poema.

Nunca fiquei tanto tempo sem escrever poesia. E não me sinto motivado a escrever. Sempre digo que meus poemas nascem do espanto, ou seja, de algo que põe diante de mim um mundo sem explicação. É essa perplexidade que me faz escrever. Pode ser que, aos 82 anos de idade, já nada mais me espante na vida.

Mal escrevo essas palavras e chega Maria, empregada minha há mais de 20 anos, que nunca leu um poema meu e nunca tocou nesse assunto durante todos esses anos, e me diz:

- Seu Gullar, é verdade que o senhor resolveu não escrever mais poesia? É o que o pessoal anda dizendo por aí.




Texto de Ferreira Gullar,
originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo em 09/06/2013 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

No Limite

O que, afinal, está acontecendo? Em três meses, milhares de motocicletas são roubadas em São Paulo, centenas de residências e transeuntes são assaltados, trabalhadores, mulheres e pais de família são assassinados com uma frequência assustadora. Viver em São Paulo tornou-se risco de morte, é isso? Quer dizer, então, que a cidade está em guerra?

Pior: a cidade está ocupada por bandidos armados que surgem a qualquer momento e em qualquer ponto dela, empunhando fuzis, armas automáticas, decididos a tirar a vida de qualquer um.

Pelo modo como agem, parecem particularmente empenhados em matar, como se isso lhes desse especial satisfação. Matam mesmo quando o assaltado não oferece resistência. Matam para matar, por nada, para nada.

Mas por que razão agem assim? Uma hipótese é a de que estejam drogados, por ser difícil admitir que sejam todos homicidas natos.

Sou da teoria de que o cara nasce poeta e nasce homicida. Digo isso porque sei de gente que em hipótese alguma admitiria tirar a vida de alguém, enquanto outros, a primeira coisa em que pensam, se alguém os ofende, é acabar com ele. Felizmente, raras pessoas são assim.

Daí levantarmos a hipótese de que, se tantos assaltantes matam gratuitamente, é por estarem fora de si, drogados.

Aliás, a droga é um dos motivos que levam aos roubos e assaltos. Com frequência, a polícia, quando prende assaltantes, encontra drogas com eles. Isso explica parte do terror que assusta a cidade, mas não explica tudo.

Não explica, por exemplo, ações criminosas levadas a cabo por verdadeiras equipes de bandidos, munidos de armas pesadas, sofisticadas, obedecendo a um plano minuciosamente traçado.

Quando a polícia chega à sede da quadrilha, depara-se com vasta quantidade de armas, munições e até planos de ação cuidadosamente elaborados.

Esses dados parecem indicar que, fora os bandidos comuns e os drogados, há organizações criminosas, diferentes das antigas quadrilhas do passado: estas de agora se valem de novos recursos teóricos e tecnológicos, que fazem delas organizações eficazes.

Além dos novos meios de comunicação e um conhecimento detalhado do aparelho repressivo, de que dispõem, parece-me haver, em algumas delas, pelo menos, a ação organizada e planejada, apoiada em uma infraestrutura capaz de acumular o produto roubado para vendê-lo, mais tarde, dentro de um esquema que inclui o comércio legal.

Do contrário, como se explica a descoberta frequente de galpões e armazéns cheios de mercadorias roubadas, numa quantidade que tornaria inviável comercializá-las, a não ser com apoio num sistema legal de comércio?

Ou seja, nestes casos, legalidade e ilegalidade se confundem, ou melhor, o comércio legal se alia ao crime e lucra com isso. Trata-se, portanto, de um tipo de criminalidade bem mais ameaçadora, porque capaz de minar a estrutura social e corromper setores inclusive responsáveis pelo combate ao crime, incluindo aí os aparelhos policial e judicial.

Estas são algumas considerações e especulações de alguém que não é especialista no assunto, mas que foi levado a refletir sobre o problema.

Não tenho dúvida de que as autoridades responsáveis pelo combate à criminalidade, em São Paulo e no país, estão igualmente preocupadas e buscando solução para tão grave problema.

Mas isso não basta para tranquilizar as pessoas. Ouvi, outro dia, na televisão, um cidadão afirmar que nem ele nem qualquer membro de sua família sai mais à noite, seja para ir ao cinema seja para jantar num restaurante.

Significa que os cidadãos são agora reféns dos bandidos? Isso se torna tanto mais assustador quando se sabe que o Brasil mesmo, como país, é um dos mais violentos do mundo. Li que se mata mais gente aqui do que na guerra civil da Síria.

É hora, portanto, de o governo, em suas diferentes instâncias, buscar com seriedade a solução desse
problema.

Não por acaso, faz poucos dias, o governador de São Paulo admitiu quanto é grave a situação, tanto que anunciou um programa de combate à criminalidade, prevendo bônus aos policiais que mais se empenharem no combate ao crime, além da ampliação do efetivo policial. Tais medidas não solucionarão o problema, mas, pelo menos, implicam o reconhecimento de quão grave ele é.



Texto de Ferreira Gullar,
originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo, em 02/06/2013.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Me Belisque

Como psicanalista, o dr. Abreu já tratara de muita gente estranha. Um paciente tentara esgoelá-lo e saíra do consultório diretamente para o manicômio. Outro contara em detalhes toda a sua vida, que o dr. Abreu não demorara em identificar como sendo a vida do Thomas Edison. Por isto o dr. Abreu não se surpreendeu quando a primeira coisa que aquela nova paciente disse foi:

- Eu posso não estar aqui.
O dr. Abreu pediu, sorrindo, para ela explicar. Ela disse:
- Eu nunca sei se estou sonhando ou não estou. É por isto que eu estou aqui.
- Então você está aqui – disse o dr. Abreu.
- Se eu não estiver sonhando. Eu posso estar na minha cama, dormindo, e sonhando que estou aqui.
- O que não a impede de falar, e me contar os seus problemas.
- Meu problema é um só. Não consigo distinguir sonho de realidade.
- Muito bem. Vamos supor que isto seja um sonho. Que eu também não esteja aqui, e sim no seu sonho. Podemos fazer a sessão assim mesmo. Com a vantagem que você não precisará pagá-la, já que é tudo um sonho.

- O senhor acha?
- Acho. Deite-se, por favor.
- Aqui, no divã?
- Por favor.


* * * *


O dr. Abreu pediu para ela contar desde quando confundia sonho com realidade. Ela respondeu que desde criança. Ela se lembrava de algum trauma de infância que pudesse ter desencadeado a confusão? Não, não. Na verdade sua infância tinha sido um sonho. Ou então ela sonhara que tinha sido um sonho. Era difícil dizer.
- Você nunca fez um teste para saber se era sonho ou não?
- Como, teste?
- Por exemplo, tentar fazer uma coisa completamente impossível. Voar. Sair voando pela janela. Se você conseguir voar, é sonho. Se não, não é.
- Me belisque.
- Como?
- É um teste. Me belisque. Se eu sentir, não é sonho.
- Desculpe, mas eu não posso beliscá-la. Não posso tocá-la. Seria antiético.
- Só se não fosse sonho. Se fosse, não teria importância. Sonho não tem ética, não tem moral, não tem regras, não tem lógica. Num sonho nada é impossível, nada é proibido. Me belisque.
- Não posso.
- Você não quer me ajudar? Seria um beliscão terapêutico. Para acabar com as minhas dúvidas.
- Desculpe.
- Você prefere que eu tente sair voando pela janela. É isso?
- Não, eu….
- A verdade é que você não tem certeza se isto é um sonho ou não. É ou não é?
- Claro que não. Eu tenho certeza que isto é a realidade.
- Então me belisque, para provar.
- Não.
- Me belisque!
- Não posso.
- Me belisque!
Naquele momento, o dr. Abreu pensou no seu velho sonho de largar a profissão se retirar para um sítio, longe da voz humana.




Texto de Luis Fernando Verissimo,
originalmente publicado no jornal Estadão, em 16/09/2012. 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Dama de Computador

Depois de saber que o Chico Buarque também fica jogando paciência no computador em vez de trabalhar, me senti desagravado. Eu não estou perdendo tempo ou protelando o momento de começar a escrever, quando jogo paciência. Estou, digamos assim, fazendo alongamento do músculo cerebral. Ou distraindo o cérebro enquanto a verdadeira criação se dá em outro nível, no inconsciente. 

E, se isso parecer conversa de vagabundo para se justificar, agora tenho um argumento irrespondível: o Chico Buarque faz a mesma coisa!

Há muitos jogos no meu computador, com vários graus de complexidade, mas até agora só aderi à paciência, o mais fácil. Um dia tentei jogar dama no computador. Eu fui bom em dama quando era garoto. Nunca progredi da dama para o xadrez, talvez pela mesma razão que me impediu de gostar de matemática, entrar em labirintos e pensar muito profundamente sobre os buracos negros.

(Dizem que dama é xadrez para as almas simples)


Joga-se dama de computador não contra o computador, mas contra outro jogador que esteja na linha, movimentando-se uma peça no tabuleiro e esperando que o adversário, em alguma parte do mundo, movimente uma sua. Mas não consegui ir além de duas ou três peças movimentadas.



Estava jogando bem, mas tive que parar.
Até agora não sei explicar minha sensação diante daquele adversário que eu não via, que não sabia onde estava ou que cara tinha, embora estivéssemos, para todos os efeitos, cara a cara. 

Era como jogar com um fantasma.


Mais do que isto: era como ter minha casa invadida por um membro daquela estranha seita, talvez escrava, cuja única função na vida é ficar esperando desafios anônimos no jogo de dama. Era isto: a sensação de uma cidadela invadida e de uma intimidade indesejada cada vez que o outro movimentava uma peça.

Abandonei o dama no meio do jogo e cliquei no paciência. Jogando paciência você às vezes se sente sacaneado pelo computador, que geralmente permite uma vitória a cada cinco ou seis tentativas. Mas pode ao menos ter certeza de que não é nada pessoal.

Crônica-vovô
A Lucinda, que tem quatro anos e meio, frequentemente nos premia com abraços e beijos extemporâneos. Mas também tem seus dias rebeldes, quando a qualquer aproximação de avô ou avó a fim de agarramento ordena: “Me deixem em paz.”

 
No outro dia cheguei perto dela pensando num abraço e, se tivesse sorte, alguns beijos e ouvi seu aviso:



 — Não se atreva.
Não se atreva! 

É claro que obedeci.



Crônica de Luis Fernando Verissimo
originalmente publicada no jornal O Globo em 03/03/2013

domingo, 14 de julho de 2013

O Verniz

A dúvida sobre tratar o acusado pelas bombas em Boston como cidadão americano, com todos os seus direitos respeitados, ou como “combatente inimigo” julgado por um tribunal militar, com direitos restritos e, se condenado, execução garantida, e a proposta de se baixar a idade para a responsabilização penal no Brasil são questões parecidas.

Nos dois casos o que se propõe é um retrocesso, a suspensão de conquistas da civilização para enfrentar exigências extremas: no caso americano o combate exemplar ao terrorismo, que não comportaria filigranas jurídicas, no nosso caso a evidência de que cada vez mais crimes são cometidos por menores, inimputáveis segundo a legislação.

A conclusão nos dois casos é que o processo civilizatório que priorizou a proteção dos direitos de todos, inclusive de criminosos, foi uma conquista da retórica dos bons sentimentos, impraticável diante da crua realidade.

Os casos extremos testam a possibilidade de a razão e a ponderação conviverem com o embrutecimento geral da espécie, e para enfrentá-los retrocedemos ao tempo em que não havia proteção alguma contra a prepotência do Estado ou o erro da Justiça. Quando não retrocedemos ao tempo da reciprocidade bíblica, do olho por olho, de uma atrocidade vingando outra. E o verniz da civilização se espedaça.

Nos Estados Unidos, pelo menos em teoria (ou no cinema) todo preso tem direito de saber seus direitos na hora da prisão: de manter-se em silêncio, de não se incriminar e de ter um advogado. Principalmente depois dos atentados de 11/9, quando o Bush declarou guerra ao terrorismo mundial, os Estados Unidos têm enfrentado o dilema de serem — na sua própria avaliação — a única nação moral do mundo, obrigada a recorrer a todos os meios para se defender do terror, inclusive a oficialização mal disfarçada da tortura.

Os presos sem direitos em Guantánamo são um embaraço permanente para os americanos e tornam hipócrita a condenação dos presos políticos em Cuba. O que fazer para satisfazer a revolta nacional com o ataque covarde em Boston é outro desafio moral para a Justiça americana. Parece que escolheram processar o prisioneiro como cidadão do país. Ponto para a civilização, ou o que resta dela.

No Brasil a questão da maioridade penal ainda está para ser decidida. Talvez o verniz ainda resista mais um pouco.


Texto de Luis Fernando Verissimo,
originalmente publicado no jornal O Globo em 25/04/2013. 

sábado, 13 de julho de 2013

Touradas

A alma ibérica se divide em duas, uma mais caliente e a outra menos. Portugal é uma Espanha ponderada. A divisão está evidente na tourada, essa metáfora para todas as dicotomias humanas. Na Espanha matam o touro, em Portugal apenas o irritam. Ainda não se chegou a um acordo sobre o quê, exatamente, toureiro e touro simbolizam.

A metáfora não é clara. Razão x instinto? Cultura x natureza? Civilização x força bruta? 

Ou — como li em algum lugar — tudo não passa de um ritual de sedução, com o Homem subjugando a Mulher, a Besta Primeva e todos os seus terrores, numa espécie de tango sangrento em que não falta uma penetração no fim?

Ou o toureiro gracioso é a mulher estilizada e o touro resfolgante uma paródia de homem? Enfim, seja o que for que se decide numa arena de touros, os espanhóis terminam o ritual, os portugueses deixam pra lá.

Na Argentina, os líderes militares da época da repressão foram processados e as atrocidades cometidas pela ditadura punidas, ou pelo menos amplamente discutidas. No Chile, aos poucos a história ainda mal contada do governo Pinochet se incorpora à história oficial do país — para ser reconhecida e expiada, para que reconciliação não signifique absolvição e para que nunca mais se repita.

No Brasil, a repressão foi menos assassina do que na Argentina e no Chile — se é que se pode falar em graduações de barbaridade — e ninguém ainda teve que dar muitas explicações. No caso, a simpática irresolução portuguesa desserve a História. Pois, se o touro continua vivo, o que há para expiar? Aqui, até agora, venceu o deixa-pra-lá-ismo.

Já que temos que ser ibéricos, o que é melhor, ser português ou espanhol? 

Os espanhóis parecem viver mais perto do coração selvagem da vida. Os portugueses preferem menos drama e menos sangue.

Voltando ao touro: uma tourada espanhola sempre acaba com o animal morto, com uma resolução. Uma tourada portuguesa pode ser um espetáculo emocionante, mas o touro sobrevive e nada se resolve. E ainda se discute se convém irritar o touro.




Texto de Luis Fernando Verissimo,
originalmente publicado no jornal O Globo em 02/06/2013

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Batalha

Ninguém entendeu quando o Jorge e a Gisela voltaram da lua-de-mel separadose, em vez de constituírem um lar, constituíram advogados. Afinal, a não ser por alguma revelação insólita – um descobrir que o outro não era do sexo que dizia ser, ou era tarado, ou era, sei lá, um vampiro – , nada que acontece ou deixa de acontecer numa viagem de núpcias é tão terrível que não possa ser resolvido com tempo, compreensão ou terapia. E o sexo não poderia ter sido tão desastroso assim.
- Nã, não – disse o Jorge. – O sexo foi ótimo. O problema foi outro.
- Qual?
- Batalha-naval.
O sexo tinha sido tão bom que Jorge e Gisela ficaram uma semana sem sair da cama. Mas o amor, como se sabe, é como marcação sob pressão no futebol. Por mais bem preparados fisicamente que estejam os jogadores, eles não podem marcar sob pressão os 90 minutos.
E foi para preencher os intervalos entre o sexo que o Jorge propôs a Gisela que jogassem batalha-naval. Tinham o que era preciso no quarto, papel e lápis. Qualquer borda reta serviria como régua para fazerem os quadradinhos. Não precisavam sair da cama. E o vencedor poderia escolher a forma como se amariam, depois da batalha.
- Jota 11.
- Água. Bê quatro.
- Outro submarino.
- Viva eu!
Quem passasse pela porta do quarto dos recém-casados e ouvisse aquilo não entenderia o que acontecia lá dentro. Jorge e Gisela, nus sob os lençóis, um atirando seus mísseis imaginários sobre a frota do outro. Gisela, estranhamente, acertando mais do que Jorge. Que já tinha perdido dois submarinos e um cruzador quando finalmente acertou um disparo.
- Agá nove – cantou Jorge.
- Ih… – lamentou-se Gisela – Parte do meu porta-aviões.
- Arrá! – gritou Jorge, triunfante.
- Ele 12 – tentou Gisele.
- Água, água – disse Jorge, ansioso para terminar o serviço no porta-aviões inimigos – Agá dez!
- Água. Dê 13…
- Água. Agá oito…
- Água. Efe dois…
- Água. Gê nove.
- Água. Ele seis.
- Água. I nove!
- Água. Ene…
- Espera um pouquinho. Como, água?
- Água. Você acertou na água.
- Você me disse que agá nove era parte do seu porta-aviões.
- E é.
- Mas eu disparei em volta do agá nove e não acertei mais nada.
- Exatamente. Só acertou água.
- E onde está o resto do seu porta-aviões?
- E eu vou dizer? Engraçadinho! Tente adivinhar.
Jorge estava de boca aberta. Quando ele conseguiu falar, foi com a voz de quem acaba de encontrar uma nova forma de vida e tem medo de provocá-la.
- Deixa ver se eu entendi. O seu porta-aviões não está todo no mesmo lugar…
- Claro que não! Eu divido em quatro partes, e boto uma bem longe da outra. Assim fica mais difícil de atingir.
Os amigos concordaram que seria perigoso ficar casado com uma mulher que esquarteja e espalhava o seu porta-aviões. Por melhor que fosse o sexo, era preciso pensar no resto da vida, quando os intervalos ficariam cada vez maiores. Jorge nem chegou a contar que os submarinos de Gisela não constavam no diagrama de sua frota. Segundo ela, estavam submergidos, podiam estar em qualquer lugar, nem ela saberia onde encontrá-los. Era melhor pedir o divórcio.


Luis Fernando Veríssimo

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Escrevo, triste, no meu quarto.........

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei.
E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. 

Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. 
Vivo mais porque vivo maior.
Bernardo Soares
(Heterônimo de Fernando Pessoa)

terça-feira, 9 de julho de 2013

Tia Fifa

Uma visita da tia Fifa causa alvoroço nas famílias. Ela anuncia a visita com antecedência para a família se preparar. Porque a tia Fifa é exigente. Quer que, quando chegar, tudo esteja perfeito. E não aceita explicações. 

Quando chega, a tia Fifa passa o dedo nos móveis com luva branca, atrás de poeira. 

Examina as unhas de todo o mundo. 

Procura sujeirinha atrás de todas as orelhas e cheira todas as meias. 

Inspeciona as novas instalações que mandou construir antes de chegar, de acordo com especificações rigorosas. 
E ai de quem reclamar.
— Tia Fifa, nós somos pobres…
— Não interessa. Pobreza não é desculpa para desleixo. A África do Sul também era pobre e minha visita lá foi um sucesso. As instalações que mandei construir ficaram lindas. Impressionantes, imponentes…
— E imprestáveis. Dizem que eles não sabem o que fazer com as instalações que a senhora deixou lá, depois da sua visita…
— Bobagem. São belíssimas.
É importante saber que a tia Fifa não é como é por insensibilidade ou elitismo desvairado. Suas exigências, que parecem irrealistas, obedecem a um desejo de ordem social e estética. A tia Fifa sonha com um mundo limpo, em que as desigualdades entre ricos e pobres desaparecem desde que todos sigam as mesmas regras e tenham o mesmo gosto, e por isso a convidam.
— Mas tia Fifa, o dinheiro que nós vamos gastar para que a casa fique como a senhora quer não seria mais bem aproveitado na educação das crianças, ou na…
— Isso já não me diz respeito. Me convidaram e eu irei. Acabem as instalações que eu pedi no prazo e ponham a casa em ordem.


E mais uma coisa
:
— O que, tia Fifa?
— Você está com mau hálito. 

Providencie.
 


De Luis Fernando Verissimo,
publicado originalmente no jornal O Globo em 23/06/2013

sábado, 6 de julho de 2013

A Água da Chuva desce a ladeira

A água da chuva desce a ladeira.
É uma água ansiosa.
Faz lagos e rios pequenos, e cheira
A terra a ditosa.

Há muito que contar a dor e o pranto
De o amor os não querer...
Mas eu, que também o não tenho, o que canto
É uma coisa qualquer.

© FERNANDO PESSOA  - 21-3-1928
In Poesias Inéditas (1919-1930), 1956
Ed. Ática, Lisboa (imp. 1990)

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Vivo mais porque vivo maior

"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei.
E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios.
Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele.
Vivo mais porque vivo maior."


Bernardo Soares (heterônimo Fernando Pessoa)

terça-feira, 2 de julho de 2013

Os Antigos

Os antigos invocavam as Musas.
Nós invocamo-nos a nós mesmos.
Não sei se as Musas apareciam —
Seria sem dúvida conforme o invocado e a invocação. —
Mas sei que nós não aparecemos.
Quantas vezes me tenho debruçado
Sobre o poço que me suponho
E balido "Ah!" para ouvir um eco,
E não tenho ouvido mais que o visto —
O vago alvor escuro com que a água resplandece
Lá na inutilidade do fundo...
Nenhum eco para mim...
Só vagamente uma cara,
Que deve ser a minha, por não poder ser de outro.
E uma coisa quase invisível,
Exceto como luminosamente vejo
Lá no fundo...
No silêncio e na luz falsa do fundo...
Que Musa! ...


Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Curupira, o danadinho






Curupira, o danadinho
Neste mês de julho vou- vos contar história
esquisita de um ser mais esquisito ainda. Os índios
chamam-no de Curupira. Começo por descrevê-lo: é
feio que nem o Tinhoso e peludo que nem um urso,
mas pequeno. Já se viram dentes verdes? Pois o
Curupira tem. Sem falar nas orelhas agudas. Ele não é
caranguejo, porém seus pés são virados para trás,
como se ele fosse andar de marcha a ré. Ninguém
nunca sabe onde ele está. Fugindo sempre? Talvez. E
de repente surge em assustadora aparição. Quando vai
embora não deixa rastro na terra. Só se ouve um
sussurro na mata — podem estar certos: é ele. E além
do sussurro ouvem-se as marteladas no tronco das
árvores. E que, sem ninguém lhe mandar, ele as vigia
para saber se agüentam tempestades e borrascas.
Que ser misterioso. Pois que também é sábio: conhece,
ao olhar apenas, as plantas que curam doença de
bicho. Porque ele protege os animais contra malefícios
e caçadores. E faz tudo isso sem deixar marcas. Só fica
no ar um perfume de mata virgem que é o seu. Mas o
danadinho raramente auxilia pessoas, esse pequeno
moleque.
As vezes simpatiza com um ou outro caçador e logo
o convida para morar na floresta. Como o Saci-Pererê,
também pede fumo e em troca do que lhe é dado
ensina os segredos da selva.
Também sabe se vingar dos índios que, com
flechas, ferem um bicho indefeso. Então o Curupira o
atrai para caminhos sem fim e eis o caçador enganado,
tonto e perdido. É verdade que pede antes a um
caçador que não mate animais dos que vivem em
grupo, porque o grupo ficará com saudade deles. Mas,
ai de nós se o índio não cede! Não tem o perdão do
Curupira. Espalha fogo e quase deixa o índio bem
assado. Os caçadores temem esta espécie de gnomomonstro
e suas vinganças.
Tudo o que ele pede, se não dão atrai sorte ruim.
Me dá fumo! diz o Curupira para o índio jangadeiro. E
se este nega, a jangada é virada para o fundo das
águas. Tem qualquer parentesco com o Saci-Pererê.
Mas enquanto este gosta de se divertir com os outros,
com o Curupira não se brinca Por exemplo: coitado de
quem penetra na sua mata que serve de casa. A
vingança não tarda.
Não se sabe é explicar por que ele é tão bom com
os bichos E, se não está em guerra, vive muito bem
nas profundezas distantes da floresta.




Clarice Lispector
(Doze Lendas Brasileiras)
Editora Nova Fronteira