sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!


Paulo Leminski

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Amar você é coisa de minutos…

Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui


Paulo Leminski

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O Meu Avô

Vovó finou-se ao lado do fogão, cerzindo meias no ovo de madeira. O velho dava-lhe as costas, um de mal com o outro. O ovo rolou a seus pés... voltou-se para ela, quietinha na cadeira de palha. Cerzira a meia e, ao levar o fio à boca (tinha todos os dentes aos setenta anos), morreu.
O velho trancou-se no quarto. Batia na parede com um martelo, a cada pancada seguiu-se um grito, Os filhos arrombaram a porta, tomaram-lhe o martelo, não é que enterrava um prego na cabeça?
Vovô comia com a colher. Meu pai cortava-lhe a carrne no prato e, ao deitar-se, escondia garfo e faca. O velho levava para o quarto a sua garrafa de vinho, que os filhos enchiam toda noite, misturando-o com água.
Tinha muito medo de açúcar na urina. Antes de enfiar-se na cama, de cachimbo e ceroula, aparava dois barbantes na medida do pulso e tornozelo, verificava na manhã seguinte se o corpo havia inchado. Dormia bêbado, esquecido da porta aberta...Um dos netos reduzia os barbantes e espalhava açúcar pelo ourinol, que amanhecia coberto de formiguinha ruiva.
Saudoso da falecida, jurou privar-se de manteiga o resto de seus dias. E manteiga era o que mais gostava, depois de beber. Vovó não se deu por satisfeita; ele a escutava que vinha deitar-se, arrastando o vaso debaixo da cama. A garrafa corria no soalho, gorgolejava um resto de vinho. Os brados do meu avô ecoavam pela casa:
-Suma-se daqui... Já morreu, diaba!
Que tanta mosca ao redor da cama? No velório bem se queixou: essa bicha está com cheiro! e queimava folhas de alecrim no brasido.
O velho achou a navalha de meu pai e, antes que a defunta se deitasse na cama, cortou o pescoço de uma a outra orelha. Sustentando com as mãos a cabeça, seguiu pelo corredor até a cozinha, deitou-se ao pé da cadeira de palha — o sangue verteu que nem chuva debaixo da porta.
Pela manhã, quando foi acender o fogo, mamãe o encontrou. Meu pai suspendeu o velho, encostou-o na parede: "Pai, pai, sou eu. Pai, me responda. É o Paulo". Tinha de firmar a cabeça no pescoço a fim de que não rolasse.
De volta do enterro, meu pai sentou-se na cadeirinha de palha, o queixo na mão. Foi ao quarto de vovô, achou a garrafa pela metade. Bebeu o vinho azedo, esfregou os dedos no sangue, chamou pelo velho. Conversava com ele no quarto, bem como pai e filho. Mamãe batia na porta:
— Venha jantar, Paulo.
À noite, ele pregou as portas e janelas. E foi dormir bêbado, a mão suja de sangue.

Dalton Trevisan saindo da Livraria Chain,Curitiba
(Novelas Nada Exemplares. pqgs. 104 a 106)

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Um Ontem Que Não Existe Mais

Você não me quer
Só porque eu não sou comum
Só porque eu não sou banal
Você não me quer
Só porque eu não sou qualquer um
Não tenho desejo algum de parecer normal
E pela cidade o que mais se diz
É que minha tristeza te deixa feliz
Mas tudo que você deseja eu já fui
E agora sua alma sozinha possui 


Vista parcial de São Paulo, mostrando parcialmente
o Vale do Anhangabaú e o Prédio Alexandre Mackenzie em 1937
 
 

Um ontem que não existe mais
Um ontem que não existe mais
Um ontem…
Como ajudar
Alguém que não pede socorro?
... Alguém que não consegue chorar?
Continuar,
Se já chegamos no alto do morro
Não encontramos vales nem rios para atravessar
Quem sabe um dia eu possa chegar
Novamente no porto onde você está
À espera do velho navio que não percebeu
Que acabou de afundar?(num)
Um ontem que não existe mais
Um ontem que não existe mais
Um ontem…

Paulinho Moska

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O Amor bate na aorta







Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,

hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.


Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:

vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...




Carlos Drummond de Andrade
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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Charles Towneley and friends in the Park Street Gallery, Westminster, 1782-3

Charles Towneley and friends in the Park Street Gallery, Westminster, 1782-3
Johann Zoffany nasceu em Frankfurt na Alemanha em 1733. Começou estudando escultura para depois se dedicar à pintura. Em 1750 viajou pela Itália. Em Roma aprimorou sua técnica de pintura com Agostino Masucci. Em 1760 foi para Inglaterra onde acabou se estabelecendo como pintor para o resto de sua vida. Viajou muito, inclusive para o Oriente [Índia] retornando sempre para sua residência no Reino Unido onde faleceu em 1810.

Charles Towneley and friends in the Park Street Gallery, Westminster, 1782-3
Johann Zoffany (Alemanha, 1733-1810)
Óleo sobre tela, 127 x 102 cm
Towneley Hall Art Gallery and Museum
Burnley, Reino Unido


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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O Negrinho do Pastoreio

 Como é mês de agosto e faz um pouco de frio, vou contar uma história que aconteceu nos pampas do sul do país, talvez em Pelotas. Começa não muito bem, pois nesses pampas havia um homem muito rico, mau e sovina: nem restos de comida ele dava. Seu filho era um guri que herdara sua ruindade. Esqueci de dizer que a história se passa no tempo da escravidão. E vou falar de um escravinho mais negro que carvão chamado exatamente de Negrinho. 

Não conhecia pai ou mãe e dizia que Nossa Senhora era sua madrinha. Apanhava do patrão e do filho que não era brincadeira. O homem ruim tinha um cavalo baio muito bonito e veloz e um estancieiro vizinho desafiou-o dizendo: será que esse cavalo baio é bom na corrida? Já se sabe quem ia montar o baio sem sela: o Negrinho, é claro. Mas infelizmente o baio perdeu na corrida e o Negrinho levou uma surra que eu vou te contar. E como se não bastasse, mandaram-no tomar conta da tropilha do patrão. 

Era de noite, Negrinho estava todo machucado e com medo dos bichos que pudessem se achegar. Mas Nossa Senhora ajudou-o a adormecer. Eis senão quando ouviu- se um tiro de espingarda no ar: os animais se assustaram e se dispersaram pelas campinas. O estampido partira do filho do patrão. Mas quem levou nova surra foi o Negrinho. Mandaram-no procurar os cavalos. Enquanto isso a noite estava ainda mais fechada. E não se via cavalo nenhum. Aí o Negrinho pegou um toco de vela que iluminava sua madrinha no oratório do homem ruim. E correu pelas coxilhas montado no baio, à procura dos cavalos dispersos. 

Aconteceu um pequeno milagre: cada vez que a vela abençoada pingava cera no chão, milhares de velinhas iam aparecendo para iluminar a noite. Com esse grande auxílio, o Negrinho encontrou os cavalos. E cansado adormeceu, O homem ruim tinha raiva até do sono do Negrinho e mandou um outro escravo dar chicotadas no garoto e colocá-lo junto de um formigueiro, só para chatear o menino.

Depois o patrão quis ver o moleque que devia estar todo roído de formigas. Mas junto do formigueiro estava o Negrinho perfeitamente sadio, com o baio e a tropilha. Espantado o homem ruim, mais espantado ficou, porque viu junto do escravinho a Nossa Senhora protegendo o Negrinho, O homem ruim se ajoelhou de medo e não de bondade. Quanto ao Negrinho, montado no baio, seguia corrida com a tropilha para sempre.


Para sempre quer dizer que até hoje continua a corrida.
E quem quiser, vê-lo. Quero dizer: se quiser muito mesmo. Só que durante uns dias de cada ano Negrinho some. Deve estar conversando com suas amigas formigas.


Qualquer gaúcho conhece esta história e muitos acham que o Negrinho ajuda a encontrar o que se perdeu, seja objeto, seja amor, seja felicidade sumida.


Será que a moral desta história é que o bem sempre vence? Bom, nós todos sabemos que nem sempre. Mas o melhor é a gente ir-se arranjando como pode e dar um jeito de ser bom e ficar com a consciência calminha.