Há outros dias que não têm chegado ainda, que estão fazendo-se como o pão ou as cadeiras ou o produto das farmácias ou das oficinas - há fábricas de dias que virão - existem artesãos da alma que levantam e pesam e preparam certos dias amargos ou preciosos que de repente chegam à porta para premiar-nos com uma laranja ou assassinar-nos de imediato.
Quando tuas mãos saem, amada, para as minhas, o que me trazem voando? Por que se detiveram em minha boca, súbitas, e por que as reconheço como se outrora então as tivesse tocado, como se antes de ser houvessem percorrido minha fronte e a cintura?
Sua maciez chegava voando por sobre o tempo, sobre o mar, sobre o fumo, e sobre a primavera, e quando colocaste tuas mãos em meu peito, reconheci essas asas de paloma dourada, reconheci essa argila e a cor suave do trigo.
A minha vida toda eu andei procurando-as. Subi muitas escadas, cruzei os recifes, os trens me transportaram, as águas me trouxeram, e na pele das uvas achei que te tocava. De repente a madeira me trouxe o teu contacto, a amêndoa me anunciava suavidades secretas, até que as tuas mãos envolveram meu peito e ali como duas asas repousaram da viagem.
Tira-me o pão, se quiseres, tira-me o ar, mas não me tires o teu riso.
Não me tires a rosa, a lança que desfolhas, a água que de súbito brota da tua alegria, a repentina onda de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso com os olhos cansados às vezes por ver que a terra não muda, mas ao entrar teu riso sobe ao céu a procurar-me e abre-me todas as portas da vida.
Meu amor, nos momentos mais escuros solta o teu riso e se de súbito vires que o meu sangue mancha as pedras da rua, ri, porque o teu riso será para as minhas mãos como uma espada fresca.
À beira do mar, no outono, teu riso deve erguer sua cascata de espuma, e na primavera, amor, quero teu riso como a flor que esperava, a flor azul, a rosa da minha pátria sonora.
Ri-te da noite, do dia, da lua, ri-te das ruas tortas da ilha, ri-te deste grosseiro rapaz que te ama, mas quando abro os olhos e os fecho, quando meus passos vão, quando voltam meus passos, nega-me o pão, o ar, a luz, a primavera, mas nunca o teu riso, porque então morreria.
Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil,pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugarescolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "seeu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diriamelhor, sentir.E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logode início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou deser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias depessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente devida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na ruaporque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo,que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo oque é meu, e confiaria o futuro ao futuro."Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entradanova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiraschamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bemsei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela queaprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase dealegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algummodo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudorque se tem diante do que é grande demais".
(Texto extraído do livro A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector, editora Rocco, pg. 156).
O Passado… O salão da frente recende a cravo. Um grupo de gente moça se reúne ali. “Clube Literário Goiano”. Rosa Godinho. Luzia de Oliveira. Leodegária de Jesus, a presidência. Nós, gente menor, sentadas, convencidas, formais. Respondendo à chamada. Ouvindo atentas a leitura da ata. Pedindo a palavra. Levantando idéias geniais. Encerrada a sessão com seriedade, passávamos à tertúlia. O velho harmônio, uma flauta, um bandolim. Músicas antigas. Recitativos. Declamavam-se monólogos. Dialogávamos em rimas e risos. D. Virgínia. Benjamim. Rodolfo. Ludugero. Veros anfitriões. Sangrias. Doces. Licor de rosa. Distinção. Agrado. O Passado… Homens sem pressa, talvez cansados, descem com leva madeirões pesados, lavrados por escravos em rudes simetrias, do tempo das acutas. Inclemência. Caem pedaços na calçada. Passantes cautelosos desviam-se com prudência. Que importa a eles o sobrado? Gente que passa indiferente, olha de longe, na dobra das esquinas, as traves que despencam. -Que vale para eles o sobrado? Quem vê nas velhas sacadas de ferro forjado as sombras debruçadas? Quem é que está ouvindo o clamor, o adeus, o chamado?… Que importa a marca dos retratos na parede? Que importam as salas destelhadas, e o pudor das alcovas devassadas… Que importam? E vão fugindo do sobrado, aos poucos, os quadros do Passado.