domingo, 18 de março de 2012

Esperemos


Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
- há fábricas de dias que virão -
existem artesãos da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos
com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.


Pablo Neruda

sábado, 17 de março de 2012

Tuas Mãos


Quando tuas mãos saem,
amada, para as minhas,
o que me trazem voando?


Por que se detiveram
em minha boca, súbitas,
e por que as reconheço
como se outrora então
as tivesse tocado,
como se antes de ser
houvessem percorrido
minha fronte e a cintura?


Sua maciez chegava
voando por sobre o tempo,
sobre o mar, sobre o fumo,
e sobre a primavera,
e quando colocaste
tuas mãos em meu peito,
reconheci essas asas
de paloma dourada,
reconheci essa argila
e a cor suave do trigo.


A minha vida toda
eu andei procurando-as.
Subi muitas escadas,
cruzei os recifes,
os trens me transportaram,
as águas me trouxeram,
e na pele das uvas
achei que te tocava.


De repente a madeira
me trouxe o teu contacto,
a amêndoa me anunciava
suavidades secretas,
até que as tuas mãos
envolveram meu peito
e ali como duas asas
repousaram da viagem.


Pablo Neruda

sexta-feira, 16 de março de 2012

O teu riso


Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.


Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.


A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.


Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.


À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.


Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.


Pablo Neruda

terça-feira, 13 de março de 2012

Se eu Fosse Eu


Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil,pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugarescolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "seeu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diriamelhor, sentir.E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logode início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou deser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias depessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente devida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na ruaporque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo,que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo oque é meu, e confiaria o futuro ao futuro."Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entradanova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiraschamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bemsei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela queaprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase dealegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algummodo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudorque se tem diante do que é grande demais".


(Texto extraído do livro A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector, editora Rocco, pg. 156).

segunda-feira, 5 de março de 2012

Versos Íntimos

quinta-feira, 1 de março de 2012

O Passado

O Passado…
O salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
“Clube Literário Goiano”.
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.

Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando idéias geniais.

Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.

D. Virgínia. Benjamim.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado.

O Passado…
Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
-Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?…
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas…
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do Passado.

Cora Coralina