segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A Um Diamante Bruto

Como decifrar-te? Diz! Como decifrar-te?
És como a esfinge ou mesmo como a arte
De Leonardo e sua Monalisa
E és também como uma torrente
De chuva fria ou de vento quente
Que me atordoa e me faz demente
E que me encharca e faz ranger meus dentes
Que pra chegar, aviso não precisa.
Como escalar-te? Diz! Como escalar-te?
Como tocar teu cume invisível?
Como transpor teu muro intransponível?
Que cresce tanto mais agente escala
Tantos pudores que me tiram a fala
E me pergunto se não és de Marte.
Como cavalgar-te? Diz! Como cavalgar-te?
Como domar um coração ferido?
O que fazer pra novamente dar-te
A esperança que havias perdido?
Como lapidar-te? Diz! Como lapidar-te?
E um diamante bruto transformar
E enxergar desejo em teu olhar
Sem que tu penses que isso é pecado
E não se importes se o alguém ao lado
Censurará o fato de amar-te
Como tocar-te? Diz! Como tocar-te?
E despertar a fúria do vulcão
Que na tu´alma jaz adormecido
Como arrancar de ti os teus gemidos?
Como descongelar teu coração?
Como prender-te? Diz! Como prender-te?
Na teia que eu, paciente, teço.
E que desfaço. Meio, fim, começo
E tu escapas mesmo não querendo
E sigo eu então no meu tecendo
Na esperança de um dia ter-te.

César Feitoza

domingo, 29 de setembro de 2013

O Iceberg Imaginário

O iceberg nos atrai mais que o navio,
mesmo acabando com a viagem.
Mesmo pairando imóvel, nuvem pétrea,
e o mar um mármore revolto.
O iceberg nos atrai mais que o navio:
queremos esse chão vivo de neve,
mesmo com as velas do navio tombadas
qual neve indissoluta sobre a água.
Ó calmo campo flutuante,
sabes que um iceberg dorme em ti, e em breve
vai despertar e talvez pastar na tua neve?
Esta cena um marujo daria os olhos
pra ver. Esquece-se o navio. O iceberg
sobe e desce; seus píncaros de vidro
corrigem elípticas no céu.
Este cenário empresta a quem o pisa
uma retórica fácil. O pano leve
é levantado por cordas finíssimas
de aéreas espirais de neve.
Duelo de argúcia entre as alvas agulhas
e o sol. O seu peso o iceberg enfrenta
no palco instável e incerto onde se assenta.
É por dentro que o iceberg se faceta.
Tal como joias numa tumba
ele se salva para sempre, e adorna
só a si, talvez também as neves
que nos assombram tanto sobre o mar.
Adeus, adeus, dizemos, e o navio
segue viagem, e as ondas se sucedem,
e as nuvens buscam um céu mais quente.
O iceberg seduz a alma
(pois os dois se inventam do quase invisível)
a vê-lo assim: concreto, ereto, indivisível.
Elizabeth Bishop, O Iceberg Imaginário e Outros Poemas; 
trad. Paulo Henriques Britto. Companhia das Letras, 2001.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Hábito

duas vezes por dia
bebo um pouco do veneno
e morro um pouco mais

muitas vezes penso em parar
mas só consegui diminuir
pra duas vezes ao dia

exceto quando estou com ela
pois quando estou com ela
nem lembro de haver tristeza
depois do arco-íris

nem penso que há um céu de águas sobre nós
e outros olhos nas janelas das dores
descrevendo lindas cores
com mágoas 

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Fellini tentando um plano geral

Comprou um disco dos Beatles, colocou na vitrola e passou a tarde inteira ouvindo. Só parou às seis, para escutar a Ave-Maria nos alto-falantes da igreja. Naquela época, sua namorada ainda não fabricava bombas de encomenda para explodir livros-de-ponto. Ela usava cabelos compridos, esmalte vermelho nas unhas roídas e ensaiava Ionesco com um grupo de mímicos, num porão perto do centro. Naquele triste ano de 72, não chupou nenhuma manga, coisa que gostava muito de fazer. Na repartição onde trabalhava, um retrato do presidente mofava na parede por causa da umidade – o rosto se tornando verde e a farda ficando azul. Fumava cigarros sem filtro naquele tempo. Ah, aquele tempo: Brasil arme-se ou deixe-o. Um dia viu toda a família dançando aos pares no cabaré mais suspeito da cidade. Mas, tinha certeza, fora uma alucinação – afinal, sua mãe já havia morrido fazia mais de dez anos. Que é fogo ter irmã prostituta, é. O cara chega aqui no meio da tarde, fedendo a cachaça, um calor danado, e fica lá no quarto com a Sandra, que ele chama de Tânia, e só sai, sem camisa, pra perguntar se tenho um cigarro. Eu aqui na sala, olhando pro jornal, mas sem ler uma palavra. O pai está cego, na cama. E meio doido também. Uma madrugada dessas, ele acordou berrando: “Getúúúlio”. Só parou quando minha irmã foi até lá e recitou-lhe um legítimo Camões. Não se falavam desde a época do aborto. Coisa que não entendo é essa rapaziada de hoje: tem um cara lá no bar do tio que está tomando cerveja e jogando baralho faz umas duas horas e dizendo que ali não tem homem para ele. Acho que não tem mesmo. Eu vim embora porque detesto palhaçada. E esse tipo de coisa costuma acabar mal. Sábado besta, esse: as meninas de rabo-de-cavalo passam a caminho do clube, onde vão molhar seus corpos e tomar sol. Acendo um cigarro. Olho o retrato de casamento dos meus pais. É isso: uma ilha de cada lado no meio de um oceano nada pacífico. Saio e vou ver Isabel. Quem sabem, um dia desses, não dou um tiro num 
Marçal Aquino 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Partida e Chegada

Quando observamos, da praia, um veleiro a afastar-se da costa, navegando mar adentro, impelido pela brisa matinal, estamos diante de um espetáculo de beleza rara.
O barco, impulsionado pela força dos ventos, vai ganhando o mar azul e nos parece cada vez menor.

MORTE?
Não demora muito e só podemos contemplar um pequeno ponto branco na linha remota e indecisa, onde o mar e o céu se encontram.
Quem observa o veleiro sumir na linha do horizonte, certamente exclamará: "já se foi".
Terá sumido? Evaporado?
Não, certamente. Apenas o perdemos de vista.
O barco continua do mesmo tamanho e com a mesma capacidade que tinha quando estava próximo de nós.
Continua tão capaz quanto antes de levar ao porto de destino as cargas recebidas.
O veleiro não evaporou, apenas não o podemos mais ver. Mas ele continua o mesmo.
E talvez, no exato instante em que alguém diz: já se foi", haverá outras vozes, mais além, a afirmar: "lá vem o veleiro".
Assim é a morte.
Quando o veleiro parte, levando a preciosa carga de um amor que nos foi caro, e o vemos sumir na linha que separa o visível do invisível dizemos: "já se foi".
Terá sumido? Evaporado?
Não, certamente. Apenas o perdemos de vista.
O ser que amamos continua o mesmo. Sua capacidade mental não se perdeu. Suas conquistas seguem intactas, da mesma forma que quando estava ao nosso lado.
Conserva o mesmo afeto que nutria por nós. Nada se perde, a não ser o corpo físico de que não mais necessita no outro lado.
E é assim que, no mesmo instante em que dizemos: já se foi", no mais além, outro alguém dirá feliz: "já está chegando".
Chegou ao destino levando consigo as aquisições feitas durante a viagem terrena.
A vida jamais se interrompe nem oferece mudanças espetaculares, pois a natureza não dá saltos.
Cada um leva sua carga de vícios e virtudes, de afetos e desafetos, até que se resolva por desfazer-se do que julgar desnecessário.
A vida é feita de partidas e chegadas. De idas e vindas.
Assim, o que para uns parece ser a partida, para outros é a chegada.
Um dia partimos do mundo espiritual na direção do mundo físico; noutro partimos daqui para o espiritual, num constante ir e vir, como viajores da imortalidade que somos todos nós.

Vitor Hugo

domingo, 22 de setembro de 2013

Bicarbonato de Soda

Súbita, uma angústia... 
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus prpósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconseqüência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
 

Que verão agradável dos outros!
Dêem-me de beber, que não tenho sede!

Alvaro de Campos

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Nem tudo é Fácil



É difícil fazer alguém feliz, assim como é fácil fazer triste.
É difícil dizer eu te amo, assim como é fácil não dizer nada
É difícil valorizar um amor, assim como é fácil perdê-lo para sempre.
É difícil agradecer pelo dia de hoje, assim como é fácil viver mais um dia.
É difícil enxergar o que a vida traz de bom, assim como é fácil fechar os olhos e atravessar a rua.
É difícil se convencer de que se é feliz, assim como é fácil achar que sempre falta algo.
É difícil fazer alguém sorrir, assim como é fácil fazer chorar.
É difícil colocar-se no lugar de alguém, assim como é fácil olhar para o próprio umbigo.
Se você errou, peça desculpas... É difícil pedir perdão?
Mas quem disse que é fácil ser perdoado?
Se alguém errou com você, perdoa-o... É difícil perdoar?
Mas quem disse que é fácil se arrepender?
Se você sente algo, diga... É difícil se abrir?
Mas quem disse que é fácil encontrar alguém que queira escutar?
Se alguém reclama de você, ouça... É difícil ouvir certas coisas?
Mas quem disse que é fácil ouvir você?
Se alguém te ama, ame-o...
É difícil entregar-se?
Mas quem disse que é fácil ser feliz?
Nem tudo é fácil na vida...
Mas, com certeza, nada é impossível Precisamos acreditar, ter fé e lutar para que não apenas sonhemos, Mas também tornemos todos esses desejos, realidade!!!

Poetisa Mineira Glácia Daibert