domingo, 31 de agosto de 2014

O banho de xampu

Imagem YBMW
Os liquens - silenciosas explosões

nas pedras - crescem e engordam,
concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado
com os halos ao redor da lua, embora
até o momento nada tenha mudado.

E como o céu há de nos dar guardia
enquanto isso não se der,
você há de convir, amiga,
que se precipitou;
e eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.

No teu cabelo negro brilham estrelas
cadentes, arredias.
Para onde irão elas
tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia
amassada e brilhante como a lua.
Tradução de Paulo Henriques Britto
Poemas do Brasil, Cia. das Letras, 1999 - São Paulo, Brasil


sábado, 30 de agosto de 2014

O Fim das Coisas

Pode o homem bruto, adstrito à ciência grave,
Arrancar, num triunfo surpreendente,
Das profundezas do Subconsciente
O milagre estupendo da aeronave!
Rasgue os broncos basaltos negros, cave,
Sôfrego, o solo sáxeo; e, na ânsia ardente
De perscrutar o íntimo do orbe, invente
A lâmpada aflogística de Davy!
Em vão! Contra o poder criador do Sonho
O Fim das Coisas mostra-se medonho
Como o desaguadouro atro de um rio...
E quando, ao cabo do último milênio,
A humanidade vai pesar seu gênio
Encontra o mundo, que ela encheu , vazio!


Augusto dos Anjos


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O Último Poema

Não sei quem me manda a poesia
nem se Quem disso a chamaria.

Mas quem quer que seja, quem for
esse Quem (eu mesmo, meu suor?),

seja mulher, paisagem ou o não
de que há que preencher os vãos.

fazer, por exemplo, a muleta
que faz andar minha alma esquerda,

ao Quem que se dá à inglória pena
peço: que meu último poema

mande-o ainda em poema perverso,
de antilira, feito em antiverso.


João Cabral de Melo Neto



quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Trevas

Haverá, por hipótese, nas geenas
Luz bastante fulmínea que transforme
Dentro da noite cavernosa e enorme
Minhas trevas anímicas serenas?!
Raio horrendo haverá que as rasgue apenas?!
Não! Porque, na abismal substância informe,
Para convulsionar a alma que dorme
Todas as tempestades são pequenas!
Há de a Terra vibrar na ardência infinda
Do éter em branca luz transubstanciado,
Rotos os nimbos maus que a obstruem a esmo...
A própria Esfinge há de falar-vos ainda
E eu, somente eu, hei de ficar trancado
Na noite aterradora de mim mesmo!


Augusto dos Anjos
 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Decadência

Iguais às linhas perpendiculares
Caíram, como cruéis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quase todas as pedras tumulares!
A frialdade dos círculos polares,
Em sucessivas atuações nefastas,
Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe os centros medulares!
Como quem quebra o objeto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscópicas partículas,
Ele hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o último doente
E a armação funerária das clavículas!


Augusto dos Anjos