quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Retrato

 Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.


Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.


Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida 
a minha face?
Cecília Meireles
(Obra poética, Volume 4, Biblioteca luso-brasileira: Série brasileira.
Companhia J. Aguilar Editora, 1958, p. 10)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Canção





















 
 Mulata, s/d
Di Cavalcanti (Brasil, 1897-1976)
Óleo sobre tela.

 

CANÇÃO 

                               Gonçalves Crespo

                                                            A Bernardino Machado


                              I
Mostraram-me um dia na roça dançando
Mestiça formosa de olhar azougado,
Co’um lenço de cores nos seios cruzado,
Nos lobos de orelha pingentes de prata.
               Que viva mulata!
                Por ela o feitor
Diziam que andava perdido de amor.


                             II
De entorno dez léguas da vasta fazenda
A vê-la corriam gentis amadores,
E aos ditos galantes de finos amores,
Abrindo seus lábios de viva escarlata,
                 Sorria a mulata,
                 Por quem o feitor
Nutria quimeras e sonhos de amor.


                           III
Um pobre mascate, que em noites de lua
Cantava modinhas, lunduns magoados,
Amando a faceira dos olhos rasgados,
Ousou confessar-lhe com voz timorata…
                 Amaste-o, mulata!
                 E o triste feitor
Chorava na sombra perdido de amor.


                           IV
Um  dia encontraram na escura senzala
O catre da bela mucamba vazio;
Embalde recortam pirogas o rio,
Embalde a procuram nas sombras da mata.
                 Fugira a mulata,
                 Por quem o feitor
Se foi definhando, perdido de amor.  




Em: Obras Completas, Gonçalves Crespo, Livros de Portugal, s/d, Rio de Janeiro.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Menina lendo



























Menina lendo, 1978
Aldemir Martins ( Brasil, 1922-2006)
acrílica sobre tela, 90 x 116 cm
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Pintor, gravador, desenhista, ilustrador. 
Em 1941, participa da criação do Centro Cultural de Belas Artes, em Fortaleza, com Antonio Bandeira, Raimundo Cela, Inimá de Paula e Mário Baratta, um espaço para exposições permanentes e cursos de arte. 

Três anos depois, a instituição passa a chamar-se Sociedade Cearense de Artes Plásticas – SCAP. Aldemir Martins produz desenhos, xilogravuras, aquarelas e pinturas. Atua também como ilustrador na imprensa cearense. 

Em 1945, viaja para o Rio de Janeiro, e, menos de um ano depois, muda-se para São Paulo, onde realiza sua primeira individual e retoma a carreira de ilustrador. 

Entre 1949 e 1951, freqüenta os cursos do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – Masp e torna-se monitor da instituição. Estuda história da arte com Pietro Maria Bardi e gravura com Poty Lazzarotto. 

Em 1959, recebe o prêmio de viagem ao exterior do Salão Nacional de Arte Moderna e permanece por dois anos na Itália. 
Desde o início da carreira sua produção é figurativa, e o artista emprega um repertório formal constantemente retomado: aves, sobretudo os galos; cangaceiros, inspirados nas figuras de cerâmica popular; gatos, realizados com linhas sinuosas; e ainda flores e frutas. 
Nas pinturas emprega cores intensas e contrastantes.

Aldemir Martins 
(Ingazeiras CE 1922 – São Paulo SP 2006).
Biografia: Escritório de Arte

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O orgulhoso

 

O Jequitibá, 
Zenaide Smith ( Brasil, contemporânea)
Óleo sobre tela — 80 x 120 cm

Era um jequitibá enorme, o mais importante da floresta.  Mas orgulhoso e gabola.  Fazia pouco das árvores menores e ria-se com desprezo das plantinhas humildes.  Vendo a seus pés uma tabua disse:
          — Que triste vida levas, tão pequenina, sempre à beira d’água, vivendo entre saracuras e rãs…  Qualquer ventinho te dobra.  Um tisio que pouse em tua haste já te verga que nem bodoque.  Que diferença entre nós!A minha copada chega às nuvens e as minhas folhas tapam o sol.  Quando ronca a tempestade, rio-me dos ventos e divirto-me cá do alto a ver os teus apuros.
          — Muito obrigada! Respondeu a tabua ironicamente.  Mas fique sabendo que não me queixo e cá à beira d’água vou vivendo como posso.  Se o vento me dobra, em compensação não me quebra e, cessado o temporal, ergo-me direitinha como antes.  Você, entretanto…
          — Eu, que?
          — Você jequitibá tem resistido aos vendavais de até aqui; mas resistirá sempre?  Não revirará um dia de pernas para o ar?
          — Rio-me dos ventos como rio-me de ti, murmurou com ar de desprezo a orgulhosa árvore.
          Meses depois, na estação das chuvas, sobreveio certa noite uma tremenda tempestade.  Raios coriscavam um atrás do outro e o ribombo dos trovões estremecia a terra.  O vento infernal foi destruindo tudo quanto se opunha à sua passagem.
          A tabua, apavorada, fechou os olhos e curvou-se rente ao chão.  E ficou assim encolhidinha até que o furor dos elementos se acalmasse e uma fresca manhã de céu limpo sucedesse aquela noite de horrores.  Ergueu, então, a haste flexível e pode ver os estragos da tormenta.  Inúmeras árvores por terra, despedaçadas, e entre as vítimas o jequitibá orgulhoso, com a raizana colossal à mostra…

                                                                                                                                                                     Monteiro Lobato
         

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…

Os teus beijos… a tua mão na minha…
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…


Charneca em Flor                                               Florbela Espanca

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Amor - Pois que é Palavra Essencial

Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro de vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um. 

 

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como activa abstracção que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no húmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, quais estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.


                                                                       Carlos Drummond de Andrade, in 'O Amor Natural'