segunda-feira, 30 de julho de 2012

Paisagem Noturna

A sombra imensa, a noite infinita enche o vale…
E lá no fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
- Em noss’alma criminosa,
O pavor se insinua…

Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua…
E cadentes, metálicos, pontuais,
Os tanoeiros do brejo,
- Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleve
A sombria massa
Das serranias.

O plenilúnio vai romper…Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes.
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliquescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
fazendo levantar a fronte
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas consciências medrosas
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
- A Lua
Assoma à crista da montanha.

Em sua luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam…
Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longo das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros
Quando,
fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranqüilos ruminando…
Assim a névoa azul paira sonhando…
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos.
E o luar úmido…fino…
Amávico…tutelar…
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes… 

Manuel Bandeira

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Recordo ainda...


VIII

(Para Dyonelio Machado)

Recordo ainda… e nada mais me importa…
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta…

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança…

Estrada afora após segui… Mas, ai,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iluda o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino… acreditai…
Que envelheceu, um dia, de repente!




                                                                                                                        Mario Quintana
                                                   (A rua dos cataventos. Coleção Mario Quintana. 2a. edição

                                                                     6a. reimpressão. São Paulo: Globo, 2005. p. 26)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Precisa-se


Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar. P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.
                                                                                           Clarice Lispector

terça-feira, 24 de julho de 2012

Nunca cometo o mesmo erro




nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez

                                                                               Paulo Leminski



domingo, 22 de julho de 2012

Curruíra



Para a Loura 
Teço, reteço, entristeço
Bordo, rebordo, enlouqueço
Traço, desfaço, esmoreço
Ponho, reponho, componho, sempre um recomeço
Linha a linha,
Graveto por graveto. 




Espero...
Ah, esta tempestade que não chega,
Que me evita,
Que não me contém,
Que...


Ah, esta dor lancinante, silenciosa, profunda,

Esta melancolia, estes desejos,
A tua boca que não mordisca meu pescoço... ainda.

Ah, teus olhos que não me veem,

Que não vêm,
Teus braços que não me assaltam,
Teu fogo que não me consome... ainda.

Ah, este vinho que não me embriaga,

Esta brisa que não me acalma
Este poema que não encontro... ainda.

Aconchego-me, enquanto te espero, na mansidão:

Teço, reteço, entristeço
Bordo, rebordo, enlouqueço
Traço, desfaço, esmoreço
Ponho, reponho, componho, sempre um recomeço
Linha a linha,
Graveto por graveto.


Ah, esta vontade de voar,
Ir pro meu céu,
Pro teu inferno,
Pro nosso paraíso.

Ainda não,

Ainda não é,
Por enquanto, espero-te.
Calma, paciente, silenciosa,

Louca, serena, saudosa.

Quando a desesperança me aflige,

Debruço-me, enquanto te espero, na mansidão:
Teço, reteço, entristeço
Bordo, rebordo, enlouqueço
Traço, desfaço, esmoreço
Ponho, reponho, componho, sempre um recomeço
Linha a linha,
Graveto por graveto.

Desenho castelos,

Assovio baixinho uma canção,
Faço um café,
Arrumo a cama,
Escolho a louça, os talheres e as flores,
Ponho a mesa,
Sento-me na varanda com a cuia ainda quente.

Enquanto te espero,

Refresco-me na mansidão:
Teço, reteço, entristeço
Bordo, rebordo, enlouqueço
Traço, desfaço, esmoreço
Ponho, reponho, componho, sempre um recomeço
Linha a linha,
Graveto por graveto.
Sou curruíra,
Às vezes, mansa,
Às vezes, tonta,
Mansa e tonta de saudades.
Não demore, meu amor!!!


Carlos Villarruel (18.6.2012; concluído em 20.6.2012)

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Consolo na Praia




Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.


                                                                                    Carlos Drumons de Andrade

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O Mundo é Grande


O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar. 


                                                                           Carlos Drumond de Andrade

                  ( livro Amar se aprende amando, 22a. edição, Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 19)

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Só por uma semana







Sabe o que eu mais queria na vida? Queria, durante uma semana, só ler notícias boas. Nem precisava que elas fossem tão boas; bastava que não houvesse nenhuma ruim. 




As manchetes dos jornais não precisariam falar de coisas muito importantes. Poderiam contar que neste ano estão crescendo flores, misteriosamente, em todos os canteiros de todos os prédios, e que até as vielas das favelas estão floridas e coloridas.

Além disso, por um capricho da natureza, elas estariam mais cheirosas do que nunca, e que esse fenômeno está fazendo com que as pessoas estejam mais gentis, mais delicadas, mais felizes. E os traficantes, no lugar de traficar, levariam grandes buquês para suas namoradas, que retribuiriam com beijos e palavras amorosas.

Os jornais diriam que nossos deputados e senadores se renderam à beleza que tomou conta do país, e durante esta semana esqueceriam de seus interesses particulares e só votariam projetos a favor do bem-estar geral. E isso lhes faria tanto bem que eles sairiam do Congresso a pé, falando com todas as pessoas com quem cruzassem na rua, sorrindo, simpáticos, como faziam quando estavam em campanha. Eles também colheriam e levariam flores para suas mulheres, com um carinho que elas já haviam esquecido que existia.

As rádios só tocariam canções de amor, e as televisões mostrariam praias, montanhas, lugares lindos onde se poderia passar uns dias só sendo feliz, mais nada.


Algumas pessoas não seriam citadas no noticiário desta semana, e seria proibido falar de qualquer partido político, já que eles só nos trazem desgosto. Responda rápido: algum deles lhe trouxe alguma alegria nos últimos tempos?

Os assaltantes dariam uma trégua e iriam à praia dar um mergulho para esfriar a cabeça, e quando voltassem para casa encontrariam suas mulheres felizes, preparando o almoço, e a casa cheirando a um refogadinho feito na hora. E os dois sorririam um para o outro e talvez até se amassem e deixassem a panela queimar, aliás por justíssima causa.

As crianças nas praças se enfeitariam com flores nos cabelos e não dariam um único grito; o único ruído que fariam seria o de risos e gargalhadas, tão felizes estariam. Pássaros voariam sobre nossas cabeças, e borboletas de todas as cores dançariam, naquela coreografia louca que só elas entendem.

Nessa semana, só uma coisa seria proibida: tirar fotos com o celular.

Para que as pessoas soubessem que os momentos de verdadeira felicidade são guardados dentro do peito, deles não se esquece, e para isso não precisamos de nenhuma maquininha.

Barraquinhas ofereceriam água de coco gelada e pão de queijo fumegando, de graça, como se estivéssemos numa quermesse; ninguém teria a menor preocupação com coisa alguma, ninguém falaria de doenças nem de tragédias, até porque ninguém estaria doente e nenhuma tragédia teria acontecido.

Teríamos a ilusão, durante uma semana, de que a vida seria assim, para sempre; e à noite, quando aparecessem os primeiros vaga-lumes, a certeza de que todos nossos sonhos iriam se realizar.

Aliás, uma semana seria demais; bastaria que fosse assim por um dia.

Mas talvez eu esteja querendo demais.
(texto de Danuza Leão, Folha de SP)

domingo, 15 de julho de 2012

Se se morre de amor


Se se morre de amor! — Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!

Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro

Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração — abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis, d’ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compr’ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!

Se tal paixão porém enfim transborda,
Se tem na terra o galardão devido
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram,
Entendem-se, confundem-se e penetram
Juntas — em puro céu d’êxtases puros:
Se logo a mão do fado as torna estranhas,
Se os duplica e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;

Que será do que fica, e do que longe
Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;
Pode rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações porém, que juntos batem,
Que juntos vivem, — se os separam, morrem;
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Que busca achar no berço a sepultura!

Esse, que sobrevive à própria ruína,
Ao seu viver do coração, — às gratas
Ilusões, quando em leito solitário,
Entre as sombras da noite, em larga insônia,
Devaneando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seus o desejado termo!

                                                             Gonçalves Dias
(DIAS, Gonçalves. Poesia completa e prosa escolhida. Rio de Janeiro : José Aguilar, 1959.)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Homem Nú

Hoje sinto-me nu
Despido de tudo e de todos
Apenas envolto por uma capa transparente
De fantasia e ilusão…

Sou um homem nu
Grão de areia numa praia banhada pelo mar
Gota de água num oceano de emoções.

Hoje sinto-me nu
Sinto um vazio em mim
Dor que aperta e gela o coração
Fogo que arde sem libertar chama.

Sou um homem nu
Sem brilho, sem charme, sem sedução…
Lágrima que jorra e morre no chão.