segunda-feira, 14 de julho de 2014

Travessa

Lendo no bosque, Ferdinand Heilbuth ( França, 1828-1889) -
aquarela sobre papel com detalhes em guache, 24 x 33cm


Ai, por Deus, por vida minha!
Gosto de ti — gosto tanto

Dessa tua travessura

Que não dera o meu encanto,

Que não dera o meu gostar,

Nem por estrelas do céu,

Nem por estrelas do mar!

-

Alma toda de quimeras

Que acordou no paraíso

Vinda do leito de Deus;

E que rivais de teus olhos

Só tens dois olhoos — os teus!

Pareces mesmo criança

Que só vive e se alimenta

De luz, amor e esperança.

Ave sem medo à tormenta

Que salta e palpita e ri;

Não sabes como, não sabes,

As travessas primaveras

Assentam tão bem em ti!

-

Assentam sim, como as asas

Assentam no beija-flor;

Como o delírio dos beijos

Em uma noite de amor;

Como no véu que se agita

De beleza adormecida

A brisa mole e sentida!

-

Foi por ver-te assim —  travessa

Que eu pus a minha esperança

No imaginar de criança

Dessa formosa cabeça…

Foi por ver-te assim. — Que os sonhos

Eu sei como os tem, eu sei,

Puros, lindos e risonhos,

Um coração novo e calmo

Onde a lei do amor — é lei;

Foi por ver-te assim, que eu venho

por em ti as fantasias

De meus peregrinos dias,

Como a esperança no céu;

Em ti só, que és tão louquinha,

Em ti só por vida minha!

(1859) Machado de Assis

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