Mostrando postagens com marcador Elizabeth Bishop. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Elizabeth Bishop. Mostrar todas as postagens

domingo, 31 de agosto de 2014

O banho de xampu

Imagem YBMW
Os liquens - silenciosas explosões

nas pedras - crescem e engordam,
concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado
com os halos ao redor da lua, embora
até o momento nada tenha mudado.

E como o céu há de nos dar guardia
enquanto isso não se der,
você há de convir, amiga,
que se precipitou;
e eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.

No teu cabelo negro brilham estrelas
cadentes, arredias.
Para onde irão elas
tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia
amassada e brilhante como a lua.
Tradução de Paulo Henriques Britto
Poemas do Brasil, Cia. das Letras, 1999 - São Paulo, Brasil


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

The Gentleman of Shalott / O Cavalheiro de Shalott


Which eye’s his eye?
Which limb lies
next the mirror?
For neither is clearer
nor a different color
than the other,
nor meets a stranger
in this arrangement
of leg and leg and
arm and so on.
To his mind
it’s the indication
of a mirrored reflection
somewhere along the line
of what we call the spine.
He felt in modesty
his person was
half looking-glass,
for why should he
be doubled?
The glass must stretch
down his middle,
or rather down the edge.
But he’s in doubt
as to which side’s in or out
of the mirror.
There’s little margin for error,
but there’s no proof, either.
And if half his head’s reflected,
thought, he thinks, might be affected.
But he’s resigned
to such economical design.
If the glass slips
he’s in a fix —
only one leg etc. But
while it stays put
he can walk and run
and his hands can clasp one
another. The uncertainty
he says he
finds exhilarating. He loves
that sense of constant re-adjustment.
He wishes to be quoted as saying at present:
“Half is enough.”

Qual olho é o dele?
Qual membro é real
e qual está no espelho?
A cor é igual
à esquerda e à direita,
e ninguém suspeita
que esta ou aquela
perna, ou braço, seja
verdade ou impostura
nessa estranha estrutura.
A seu ver,
isso é prova garantida
de uma imagem refletida
ao longo desta linha
que chamamos de espinha.
Modesto, sentia
que sua pessoa
era metade espelho:
pois duplicar-se seria
um total destrambelho.
O vidro se prolonga
por sua mediana,
ou melhor, sua borda.
Mas ele não sabe direito
o que está dentro ou fora
da imagem refletida.
Não há muita margem de erro,
mas provar é impossível.
E se meio cérebro é reflexo
seu pensamento terá nexo?
Mas ele aceita sem problema
a parcimônia do esquema.
Se o espelho escorregar
vai ser de amargar —
só uma perna etc. Mas por ora
está apoiado na escora,
e ele anda e corre e pega a mão
com a outra. A sensação
de incerteza o deixa feliz,
ele diz.
Afirma também que gosta
de estar sempre a se reajustar.
No momento, eis o que tem a declarar:
“Metade basta.”

Elizabet Bishop

domingo, 29 de setembro de 2013

O Iceberg Imaginário

O iceberg nos atrai mais que o navio,
mesmo acabando com a viagem.
Mesmo pairando imóvel, nuvem pétrea,
e o mar um mármore revolto.
O iceberg nos atrai mais que o navio:
queremos esse chão vivo de neve,
mesmo com as velas do navio tombadas
qual neve indissoluta sobre a água.
Ó calmo campo flutuante,
sabes que um iceberg dorme em ti, e em breve
vai despertar e talvez pastar na tua neve?
Esta cena um marujo daria os olhos
pra ver. Esquece-se o navio. O iceberg
sobe e desce; seus píncaros de vidro
corrigem elípticas no céu.
Este cenário empresta a quem o pisa
uma retórica fácil. O pano leve
é levantado por cordas finíssimas
de aéreas espirais de neve.
Duelo de argúcia entre as alvas agulhas
e o sol. O seu peso o iceberg enfrenta
no palco instável e incerto onde se assenta.
É por dentro que o iceberg se faceta.
Tal como joias numa tumba
ele se salva para sempre, e adorna
só a si, talvez também as neves
que nos assombram tanto sobre o mar.
Adeus, adeus, dizemos, e o navio
segue viagem, e as ondas se sucedem,
e as nuvens buscam um céu mais quente.
O iceberg seduz a alma
(pois os dois se inventam do quase invisível)
a vê-lo assim: concreto, ereto, indivisível.
Elizabeth Bishop, O Iceberg Imaginário e Outros Poemas; 
trad. Paulo Henriques Britto. Companhia das Letras, 2001.