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quinta-feira, 19 de junho de 2014

Às suas ordens

-Às suas ordens.
-Que-quem é?
-Às suas ordens.
-Acho que apertei o botão errado. Ainda não me aostumei com o painel deste novo sistema. Como é que eu faço par conseguir linha direta?
- Linha direta: comprima o botão vermelho no canto direito inferior do painel. Aguarde. Se der sinal de liha, comprima o botão marrom, depois o vermelho novamente.
Repita a operação até conseguir a linha.
- Obrigado, senhorita...
- De nada. Desligo.
-Escute!
-Às suas ordens.
- Olhe. Por favor, não pense que eu estou sendo indiscreto, mas é que não reconheci sua voz. Você é nova no escritório? Alô?
-Às suas ordens.
-Eu só queria esta informação...
-Informação: Comprima o "zero' no painel. Aguarde. Quando ouvir o sinal eletrônico, declare a informação desejada. Fale pausadamente.
- Não. Não. Eu só queria saber... Em primeiro lugar, o que é que você está fazendo aqui a esta hora? todo mundo já foi para casa. Já sei, é seu primeiro dia, você ainda está desambientada. Mas não precisa exagerar. Ninguém me disse que iam contratar uma nova telefonista. Aliás, me disseram que com esse novo sistema, não precisa telefonista. Você não esponde?
-Às sua ordens.
- Só me diga seu nome. Olhe, não sei o que lhe disseram a meu respeito, mas eu não sou um patrão duro, não. Só fico até esta hora no escritório porque, francamente, este é o lugar onde me sinto melhor. Minha mulher nem fala mais comigo. Me sinto muito melhor aqui, na miha mesa, na minha poltrona giratória, as minhas coisas, agora este novo telefone... entendeu? Não sei porque estou contando tudo isto para você. Ah, é para você não ter medo de conversar comigo. Sou absolutamente inofensivo. As funcionárias deste escritório, para mim, fazem parte da mobília, entende? Jamais faltei com respeito com nenhuma delas. Aliás, jamais faltei com respeito com mulher nenhuma, ouviu? Você não tem nada para me dizer?
-Não há mensagens.
O quê?
-Às suas ordens.
- Mas eu sou um animal. Você é uma gravação! Agora entendi. E eu aqui falando sozinho...Mas sabe que você tem uma voz linda?
-Às suas ordens.
-Quero fazer amor com você. Agora. aqui. em cima da mesa. Com a sua cabeça atirada para trás, por ima do calendário eletrônico. Com o jogo de canetas de acrílico espetando as suas costas. E você rindo, selvagemente, de prazer e de dor. Depois rolaremos pelo carpete como dois loucos. Como duas feras. Derrubaremos a mesa do café.
-Café: comprima o botão rosa.
- Ahn. Diz de novo. Comprima o botão rosa. Diz. Café.
-Café: comprima o botão rosa.
- Meu amor, minha paixão. Café,
-Café: comprima o botão rosa.
-Quero passar o resto da minha vida ouvindo a sua voz e omprimindo seu botão rosa. Nunca mais preciso sair do esritório. Só nós dois. Quero fazer tudo com você. Tudo!
- Você deixa?
-Às suas ordens.

Luis Fernando Veríssimo
(Ed. Mort e Outras Histórias, Luis fernando Veríssimo)

terça-feira, 16 de julho de 2013

Me Belisque

Como psicanalista, o dr. Abreu já tratara de muita gente estranha. Um paciente tentara esgoelá-lo e saíra do consultório diretamente para o manicômio. Outro contara em detalhes toda a sua vida, que o dr. Abreu não demorara em identificar como sendo a vida do Thomas Edison. Por isto o dr. Abreu não se surpreendeu quando a primeira coisa que aquela nova paciente disse foi:

- Eu posso não estar aqui.
O dr. Abreu pediu, sorrindo, para ela explicar. Ela disse:
- Eu nunca sei se estou sonhando ou não estou. É por isto que eu estou aqui.
- Então você está aqui – disse o dr. Abreu.
- Se eu não estiver sonhando. Eu posso estar na minha cama, dormindo, e sonhando que estou aqui.
- O que não a impede de falar, e me contar os seus problemas.
- Meu problema é um só. Não consigo distinguir sonho de realidade.
- Muito bem. Vamos supor que isto seja um sonho. Que eu também não esteja aqui, e sim no seu sonho. Podemos fazer a sessão assim mesmo. Com a vantagem que você não precisará pagá-la, já que é tudo um sonho.

- O senhor acha?
- Acho. Deite-se, por favor.
- Aqui, no divã?
- Por favor.


* * * *


O dr. Abreu pediu para ela contar desde quando confundia sonho com realidade. Ela respondeu que desde criança. Ela se lembrava de algum trauma de infância que pudesse ter desencadeado a confusão? Não, não. Na verdade sua infância tinha sido um sonho. Ou então ela sonhara que tinha sido um sonho. Era difícil dizer.
- Você nunca fez um teste para saber se era sonho ou não?
- Como, teste?
- Por exemplo, tentar fazer uma coisa completamente impossível. Voar. Sair voando pela janela. Se você conseguir voar, é sonho. Se não, não é.
- Me belisque.
- Como?
- É um teste. Me belisque. Se eu sentir, não é sonho.
- Desculpe, mas eu não posso beliscá-la. Não posso tocá-la. Seria antiético.
- Só se não fosse sonho. Se fosse, não teria importância. Sonho não tem ética, não tem moral, não tem regras, não tem lógica. Num sonho nada é impossível, nada é proibido. Me belisque.
- Não posso.
- Você não quer me ajudar? Seria um beliscão terapêutico. Para acabar com as minhas dúvidas.
- Desculpe.
- Você prefere que eu tente sair voando pela janela. É isso?
- Não, eu….
- A verdade é que você não tem certeza se isto é um sonho ou não. É ou não é?
- Claro que não. Eu tenho certeza que isto é a realidade.
- Então me belisque, para provar.
- Não.
- Me belisque!
- Não posso.
- Me belisque!
Naquele momento, o dr. Abreu pensou no seu velho sonho de largar a profissão se retirar para um sítio, longe da voz humana.




Texto de Luis Fernando Verissimo,
originalmente publicado no jornal Estadão, em 16/09/2012. 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Dama de Computador

Depois de saber que o Chico Buarque também fica jogando paciência no computador em vez de trabalhar, me senti desagravado. Eu não estou perdendo tempo ou protelando o momento de começar a escrever, quando jogo paciência. Estou, digamos assim, fazendo alongamento do músculo cerebral. Ou distraindo o cérebro enquanto a verdadeira criação se dá em outro nível, no inconsciente. 

E, se isso parecer conversa de vagabundo para se justificar, agora tenho um argumento irrespondível: o Chico Buarque faz a mesma coisa!

Há muitos jogos no meu computador, com vários graus de complexidade, mas até agora só aderi à paciência, o mais fácil. Um dia tentei jogar dama no computador. Eu fui bom em dama quando era garoto. Nunca progredi da dama para o xadrez, talvez pela mesma razão que me impediu de gostar de matemática, entrar em labirintos e pensar muito profundamente sobre os buracos negros.

(Dizem que dama é xadrez para as almas simples)


Joga-se dama de computador não contra o computador, mas contra outro jogador que esteja na linha, movimentando-se uma peça no tabuleiro e esperando que o adversário, em alguma parte do mundo, movimente uma sua. Mas não consegui ir além de duas ou três peças movimentadas.



Estava jogando bem, mas tive que parar.
Até agora não sei explicar minha sensação diante daquele adversário que eu não via, que não sabia onde estava ou que cara tinha, embora estivéssemos, para todos os efeitos, cara a cara. 

Era como jogar com um fantasma.


Mais do que isto: era como ter minha casa invadida por um membro daquela estranha seita, talvez escrava, cuja única função na vida é ficar esperando desafios anônimos no jogo de dama. Era isto: a sensação de uma cidadela invadida e de uma intimidade indesejada cada vez que o outro movimentava uma peça.

Abandonei o dama no meio do jogo e cliquei no paciência. Jogando paciência você às vezes se sente sacaneado pelo computador, que geralmente permite uma vitória a cada cinco ou seis tentativas. Mas pode ao menos ter certeza de que não é nada pessoal.

Crônica-vovô
A Lucinda, que tem quatro anos e meio, frequentemente nos premia com abraços e beijos extemporâneos. Mas também tem seus dias rebeldes, quando a qualquer aproximação de avô ou avó a fim de agarramento ordena: “Me deixem em paz.”

 
No outro dia cheguei perto dela pensando num abraço e, se tivesse sorte, alguns beijos e ouvi seu aviso:



 — Não se atreva.
Não se atreva! 

É claro que obedeci.



Crônica de Luis Fernando Verissimo
originalmente publicada no jornal O Globo em 03/03/2013

domingo, 14 de julho de 2013

O Verniz

A dúvida sobre tratar o acusado pelas bombas em Boston como cidadão americano, com todos os seus direitos respeitados, ou como “combatente inimigo” julgado por um tribunal militar, com direitos restritos e, se condenado, execução garantida, e a proposta de se baixar a idade para a responsabilização penal no Brasil são questões parecidas.

Nos dois casos o que se propõe é um retrocesso, a suspensão de conquistas da civilização para enfrentar exigências extremas: no caso americano o combate exemplar ao terrorismo, que não comportaria filigranas jurídicas, no nosso caso a evidência de que cada vez mais crimes são cometidos por menores, inimputáveis segundo a legislação.

A conclusão nos dois casos é que o processo civilizatório que priorizou a proteção dos direitos de todos, inclusive de criminosos, foi uma conquista da retórica dos bons sentimentos, impraticável diante da crua realidade.

Os casos extremos testam a possibilidade de a razão e a ponderação conviverem com o embrutecimento geral da espécie, e para enfrentá-los retrocedemos ao tempo em que não havia proteção alguma contra a prepotência do Estado ou o erro da Justiça. Quando não retrocedemos ao tempo da reciprocidade bíblica, do olho por olho, de uma atrocidade vingando outra. E o verniz da civilização se espedaça.

Nos Estados Unidos, pelo menos em teoria (ou no cinema) todo preso tem direito de saber seus direitos na hora da prisão: de manter-se em silêncio, de não se incriminar e de ter um advogado. Principalmente depois dos atentados de 11/9, quando o Bush declarou guerra ao terrorismo mundial, os Estados Unidos têm enfrentado o dilema de serem — na sua própria avaliação — a única nação moral do mundo, obrigada a recorrer a todos os meios para se defender do terror, inclusive a oficialização mal disfarçada da tortura.

Os presos sem direitos em Guantánamo são um embaraço permanente para os americanos e tornam hipócrita a condenação dos presos políticos em Cuba. O que fazer para satisfazer a revolta nacional com o ataque covarde em Boston é outro desafio moral para a Justiça americana. Parece que escolheram processar o prisioneiro como cidadão do país. Ponto para a civilização, ou o que resta dela.

No Brasil a questão da maioridade penal ainda está para ser decidida. Talvez o verniz ainda resista mais um pouco.


Texto de Luis Fernando Verissimo,
originalmente publicado no jornal O Globo em 25/04/2013. 

sábado, 13 de julho de 2013

Touradas

A alma ibérica se divide em duas, uma mais caliente e a outra menos. Portugal é uma Espanha ponderada. A divisão está evidente na tourada, essa metáfora para todas as dicotomias humanas. Na Espanha matam o touro, em Portugal apenas o irritam. Ainda não se chegou a um acordo sobre o quê, exatamente, toureiro e touro simbolizam.

A metáfora não é clara. Razão x instinto? Cultura x natureza? Civilização x força bruta? 

Ou — como li em algum lugar — tudo não passa de um ritual de sedução, com o Homem subjugando a Mulher, a Besta Primeva e todos os seus terrores, numa espécie de tango sangrento em que não falta uma penetração no fim?

Ou o toureiro gracioso é a mulher estilizada e o touro resfolgante uma paródia de homem? Enfim, seja o que for que se decide numa arena de touros, os espanhóis terminam o ritual, os portugueses deixam pra lá.

Na Argentina, os líderes militares da época da repressão foram processados e as atrocidades cometidas pela ditadura punidas, ou pelo menos amplamente discutidas. No Chile, aos poucos a história ainda mal contada do governo Pinochet se incorpora à história oficial do país — para ser reconhecida e expiada, para que reconciliação não signifique absolvição e para que nunca mais se repita.

No Brasil, a repressão foi menos assassina do que na Argentina e no Chile — se é que se pode falar em graduações de barbaridade — e ninguém ainda teve que dar muitas explicações. No caso, a simpática irresolução portuguesa desserve a História. Pois, se o touro continua vivo, o que há para expiar? Aqui, até agora, venceu o deixa-pra-lá-ismo.

Já que temos que ser ibéricos, o que é melhor, ser português ou espanhol? 

Os espanhóis parecem viver mais perto do coração selvagem da vida. Os portugueses preferem menos drama e menos sangue.

Voltando ao touro: uma tourada espanhola sempre acaba com o animal morto, com uma resolução. Uma tourada portuguesa pode ser um espetáculo emocionante, mas o touro sobrevive e nada se resolve. E ainda se discute se convém irritar o touro.




Texto de Luis Fernando Verissimo,
originalmente publicado no jornal O Globo em 02/06/2013

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Batalha

Ninguém entendeu quando o Jorge e a Gisela voltaram da lua-de-mel separadose, em vez de constituírem um lar, constituíram advogados. Afinal, a não ser por alguma revelação insólita – um descobrir que o outro não era do sexo que dizia ser, ou era tarado, ou era, sei lá, um vampiro – , nada que acontece ou deixa de acontecer numa viagem de núpcias é tão terrível que não possa ser resolvido com tempo, compreensão ou terapia. E o sexo não poderia ter sido tão desastroso assim.
- Nã, não – disse o Jorge. – O sexo foi ótimo. O problema foi outro.
- Qual?
- Batalha-naval.
O sexo tinha sido tão bom que Jorge e Gisela ficaram uma semana sem sair da cama. Mas o amor, como se sabe, é como marcação sob pressão no futebol. Por mais bem preparados fisicamente que estejam os jogadores, eles não podem marcar sob pressão os 90 minutos.
E foi para preencher os intervalos entre o sexo que o Jorge propôs a Gisela que jogassem batalha-naval. Tinham o que era preciso no quarto, papel e lápis. Qualquer borda reta serviria como régua para fazerem os quadradinhos. Não precisavam sair da cama. E o vencedor poderia escolher a forma como se amariam, depois da batalha.
- Jota 11.
- Água. Bê quatro.
- Outro submarino.
- Viva eu!
Quem passasse pela porta do quarto dos recém-casados e ouvisse aquilo não entenderia o que acontecia lá dentro. Jorge e Gisela, nus sob os lençóis, um atirando seus mísseis imaginários sobre a frota do outro. Gisela, estranhamente, acertando mais do que Jorge. Que já tinha perdido dois submarinos e um cruzador quando finalmente acertou um disparo.
- Agá nove – cantou Jorge.
- Ih… – lamentou-se Gisela – Parte do meu porta-aviões.
- Arrá! – gritou Jorge, triunfante.
- Ele 12 – tentou Gisele.
- Água, água – disse Jorge, ansioso para terminar o serviço no porta-aviões inimigos – Agá dez!
- Água. Dê 13…
- Água. Agá oito…
- Água. Efe dois…
- Água. Gê nove.
- Água. Ele seis.
- Água. I nove!
- Água. Ene…
- Espera um pouquinho. Como, água?
- Água. Você acertou na água.
- Você me disse que agá nove era parte do seu porta-aviões.
- E é.
- Mas eu disparei em volta do agá nove e não acertei mais nada.
- Exatamente. Só acertou água.
- E onde está o resto do seu porta-aviões?
- E eu vou dizer? Engraçadinho! Tente adivinhar.
Jorge estava de boca aberta. Quando ele conseguiu falar, foi com a voz de quem acaba de encontrar uma nova forma de vida e tem medo de provocá-la.
- Deixa ver se eu entendi. O seu porta-aviões não está todo no mesmo lugar…
- Claro que não! Eu divido em quatro partes, e boto uma bem longe da outra. Assim fica mais difícil de atingir.
Os amigos concordaram que seria perigoso ficar casado com uma mulher que esquarteja e espalhava o seu porta-aviões. Por melhor que fosse o sexo, era preciso pensar no resto da vida, quando os intervalos ficariam cada vez maiores. Jorge nem chegou a contar que os submarinos de Gisela não constavam no diagrama de sua frota. Segundo ela, estavam submergidos, podiam estar em qualquer lugar, nem ela saberia onde encontrá-los. Era melhor pedir o divórcio.


Luis Fernando Veríssimo

terça-feira, 9 de julho de 2013

Tia Fifa

Uma visita da tia Fifa causa alvoroço nas famílias. Ela anuncia a visita com antecedência para a família se preparar. Porque a tia Fifa é exigente. Quer que, quando chegar, tudo esteja perfeito. E não aceita explicações. 

Quando chega, a tia Fifa passa o dedo nos móveis com luva branca, atrás de poeira. 

Examina as unhas de todo o mundo. 

Procura sujeirinha atrás de todas as orelhas e cheira todas as meias. 

Inspeciona as novas instalações que mandou construir antes de chegar, de acordo com especificações rigorosas. 
E ai de quem reclamar.
— Tia Fifa, nós somos pobres…
— Não interessa. Pobreza não é desculpa para desleixo. A África do Sul também era pobre e minha visita lá foi um sucesso. As instalações que mandei construir ficaram lindas. Impressionantes, imponentes…
— E imprestáveis. Dizem que eles não sabem o que fazer com as instalações que a senhora deixou lá, depois da sua visita…
— Bobagem. São belíssimas.
É importante saber que a tia Fifa não é como é por insensibilidade ou elitismo desvairado. Suas exigências, que parecem irrealistas, obedecem a um desejo de ordem social e estética. A tia Fifa sonha com um mundo limpo, em que as desigualdades entre ricos e pobres desaparecem desde que todos sigam as mesmas regras e tenham o mesmo gosto, e por isso a convidam.
— Mas tia Fifa, o dinheiro que nós vamos gastar para que a casa fique como a senhora quer não seria mais bem aproveitado na educação das crianças, ou na…
— Isso já não me diz respeito. Me convidaram e eu irei. Acabem as instalações que eu pedi no prazo e ponham a casa em ordem.


E mais uma coisa
:
— O que, tia Fifa?
— Você está com mau hálito. 

Providencie.
 


De Luis Fernando Verissimo,
publicado originalmente no jornal O Globo em 23/06/2013

terça-feira, 14 de maio de 2013

Boca Aberta

Quando eu era pequeno, não acreditava em beijo de cinema. Achava que eles não podiam estar se beijando de verdade, nos filmes de censura livre. Aquilo era truque. Me contaram que usavam um plástico, que a gente não via, entre uma boca e a outra. Isso no tempo em que as pessoas só se beijavam de boca fechada, pelo menos no cinema americano. Não sei quem me deu esta informação. Alguém ainda mais confuso do que eu.

Nos filmes proibidos até 14 anos, permanecia a idéia de que nos Estados Unidos o sexo era diferente. As pessoas se beijavam – de boca fechada -, depois desapareciam da tela, tudo escurecia e a mulher ficava grávida. Quando se via o beijo do começo ao fim, não havia perigo de a mulher engravidar. Mas quando as cabeças saíam do quadro ainda se beijando, e a tela escurecia, era fatal: vinha filho. Às vezes na cena seguinte.

Durante algum tempo, só filmes europeus eram proibidos até 18 anos. Você entrava no cinema para assistir a um filme “até 18″ sabendo que ia ver no mínimo um seio nu, provavelmente da Martinne Carole. Não sei quando apareceu o primeiro seio americano no cinema. Mas me lembro do primeiro filme americano com beijo de boca aberta. Com língua e tudo. Bom, a língua não se via, a língua era presumida. Também não era beijo tipo roto-rooter, beijo de amígdala, como no cinema francês. Mas estavam lá, as bocas abertas, num beijo histórico. Depois do primeiro beijo de boca aberta, foi como se abrissem uma porteira e começasse a passar de tudo. Passa língua, passa peito, passa bunda… E em pouco tempo os americanos estariam transando sem parar. Era inacreditável. Americanos na cama, sem roupa, transando como todo o mundo!

Mas guardei o primeiro beijo de boca aberta no cinema americano porque me lembro de ter tido um pensamento quando o vi. Com aquele misto de carinho divertido e incredulidade com que recordamos nossa infância, que aumenta quanto mais nos distanciamos dela. Me lembro de ter pensado:

- Isso destrói, definitivamente, a teoria do plástico.


Luis Fernando Veríssimo

sábado, 27 de abril de 2013

O manjar


Os dois estavam comendo sem falar. Só os dois na mesa, e os dois em silêncio. Aí ele fez um comentário. Só por fazer.

- Não existe nada pior do que risoto frio.

Ela só olhou para ele e continuou mastigando.
Daí a pouco disse:

- Bunda caída.
- O quê?
- bunda caída. É pior do que risoto frio.

Novo silêncio. Depois ela completou:

- E risoto frio tem jeito. É só esquentar.

Mais dois ou três minutos. Ele:

- Bunda caída também tem jeito.
- Como?
- Ginástica. Plástica.

Desta vez o silêncio durou até o fim do jantar. Ela levantou e levou os pratos para a cozinha. Depois, como ela estivesse demorando para voltar, ele gritou:

- Matilde!

Ela apareceu na porta da cozinha.

- Que mais? – disse.
- Sobremesa, ué.
- Não. Que mais? Você já criticou meu risoto, já criticou minha bunda… Que mais?
- EU critiquei sua bunda?
- Eu faço plástica. Me dá o dinheiro que eu faço.
- Tidinha!
- Não seja por isso, Vicente.

Ela desapareceu na cozinha. Ele esperou um pouco e depois foi atrás. Ela estava olhando fixo para uma massa disforme dentro de uma fôrma, em cima do balcão.

- O que é isso? – perguntou ele.
- Manjar branco.

A massa era escura. Ele chegou a abrir a boca para falar, mas decidiu ficar quieto.
Depois, na mesa, comeu o manjar e fez “Mmmmm”.
Ela levantou-se da mesa, pegou algumas coisas no banheiro e no quarto e foi para a casa da Enolina, que tinha comprado uma TV de 29 polegadas. Decidida a não voltar mais.
Aguentava tudo, menos a ironia.


Luis Fernando Veríssimo

domingo, 21 de abril de 2013

Tintim

Durante alguns anos, o tintim me intrigou. Tintim por tintim: o que queria dizer aquilo? Imaginei que fosse alguma misteriosa medida de outros tempos que sobrevivera ao sistema métrico, como a braça, a légua, etc. Outro mistério era o triz. Qual a exata definição de um triz? É uma subdivisão de tempo ou de espaço. As coisas deixam de acontecer por um triz, por uma fração de segundo ou de milímetro. Mas que fração? O triz talvez correspondesse a meio tintim, ou o tintim a um décimo das microcoisas. Há quem diga que não existe uma fração mínima de matéria, que tudo pode ser dividido e subdividido. Assim como existe o infinito para fora – isto é, o espaço sem fim, depois que o Universo acaba – existiria o infinito para dentro. A menor fração da menor partícula do último átomo ainda seria formada por dois trizes, e assim por diante, até a loucura.

Descobri, finalmente, o que significa tintim. É verdade que, se tivesse me dado o trabalho de olhar no dicionário mais cedo, minha ignorância não teria durado tanto. Mas o óbvio, às vezes, é a última coisa que nos ocorre. Está no Aurelião. Tintim, vocábulo onomatopaico que evoca o tinido das moedas. Originalmente, portanto, “tintim por tintim” indicava um pagamento feito minuciosamente, moeda por moeda. Isso no tempo em que as moedas, no Brasil, tiniam, ao contrário de hoje, quando são feitas de papelão e se chocam sem ruído. Numa investigação feita hoje da corrupção no país tintim por tintim ficaríamos tinindo sem parar e chegaríamos a uma nova concepção de infinito.

Tintim por tintim. A menina muito dada namoraria sim-sim por sim-sim. O gordo incontrolável progrediria pela vida quindim por quindim. O telespectador habitual viveria plim-plim por plim-plim. E você e eu vamos ganhando nosso saláriotin por tin (olha aí, a inflação já levou dois tins). Resolvido o mistério do tintim, que não é uma subdivisão nem de tempo nem de espaço nem de matéria, resta o triz. O Aurelião não nos ajuda. “Triz”, diz ele, significa por pouco. Sim, mas que pouco? Queremos algarismos, vírgulas, zeros, definições para “triz”. Substantivo feminino. Popular. “Icterícia.” Triz quer dizer icterícia. Ou teremos que mudar todas as nossas teorias sobre o Universo ou teremos que mudar de assunto. Acho melhor mudar de assunto. O Universo já tem problemas demais.


Luis Fernando Veríssimo

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Aniversário


Ruy e Nara foram para a cama na hora de sempre. Ruy pegou seu livro. Mas a Nara queria conversar.

- Meu bem…
- Mmmmm?
- Sabe que dia é hoje?
- Quinta.
- Do mês.
- Ahn… Dezoito.
- E então?
- Então, o quê?
- Pense bem. É um aniversário.

Meu Deus, pensou o Ruy. Esqueci o nosso aniversário de casamento outra vez, como no mês passado. Mas se tinho sido no mês passado, não podia ser agora. O aniversário dela também não era. Ou era?

- Que aniversário? – perguntou.
- De uma coisa que aconteceu há muitos anos…
- Muitos anos?
- Antes do nosso casamento.
- Não consigo me lembrar.
- No sofá da minha casa…
- No sofá da sua casa?
- Lembrou agora?

Seria possível? A Nara dera para aquilo, agora. Ele forçou um sorriso, fez um ruído indefinido e voltou à sua leitura. Mas ela insistiu.

- Meu bem…
- Mmmmm?
- Vamos comemorar?
- Vamos – suspirou o Ruy, colocando o livro sobre a mesa-de-cabeceira.

Virou-se para a mulher. Os dois se beijaram. Depois Ruy pegou a livro outra vez. Nara protestou:

- Mas só isso?
- Só isso o quê?
- Só um beijo, Ruy?
- Se eu me lembro, naquele dia foi só um beijo.
- Sim, mas…
- Eu não insisti? Não pedi mais do que um beijo? E o que foi que você disse?
- Eu disse “não”.
- Sua exatas palavras. “Não.”
- Mas depois eu deixei, Ruy.
- Dois meses depois. Dois meses e meio!
- Ah, Ruy…
- Não.
- Então vamos comemorar o que aconteceu dois meses depois.
- Eu, nessas, coisas, sou ortodoxo. Aniversário é no dia!


Luis Fernando Veríssimo