Mostrando postagens com marcador Fernando Sabino. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Fernando Sabino. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A Última Viagem

Então,quando fazia a barba, um verso me saltou à cabeça, cortante como a própria lâmina de barbear:
"Acordo para a morte"
Era o poema do Drummond: "Barbeio-me, visto-me, calço-me. É meu último dia"...
O voo estava marcado para as duas da tarde, e ainda eram onze da manhã. A verdade é que até então viajara sempre de avião com o mais leviano destemor.
Só que aquele era o meu dia
Fui para a cidade com o Otto. Acabei lhe confiando meu pressentimento:
- Você acha que esse avião vai cair?
Ele sabia de cor o poema. Como se não bastasse, a primeira pessoa com quem esbarramos, ali na Esplanada, foi o próprio poeta. Otto lhe expôs sem rodeios o meu problema:
Ele vai hoje para Belo Horizonte de avião e está com pressentimento de que o avião vai cair . Você, que entende dessas coisas,que é que acha? Vai cair?
O autor dos macabros versos passou a mão pelo rosto:
- Por que não vai de trem?
Nada me impediria de ir de trem - era o que eu pensava agora já caminhando para o foro, onde trabalhava, para despachar o expediente antes de morrer. Abandonara meus dois amigos numa esquina rindo-se à minha custa - eles ficariam em terra firme. Otto chegara mesmo a despedir-se de mim num comovido abraço, recomendando que desse lembranças a Jayme Ovalle. No momento nem me ocorreu que Jayme Ovalle, além de não morar em Belo Horizonte, já havia morrido. Meu coração palpitava de aflição, antecipando a terrível sensação de queda. Ou não sentiria nada? Se fosse de trem, evidentemente não.
Mas eu não iria desistir do avião e tomar um trem só por conta de um pressentimento idiota.
E a lembrança dos tais versos admiráveis (para quem anda com os pés no chão), sempre me perseguindo. Antes de chegar à Rua Dom Manuel eu já formulava uma prece desconexa: que Deus me desse apenas alguma espécie de sinal.
E lá ia eu meio apatetado atravessando a rua, imerso na minha dúvida, quando uma buzina estridente me apanha pelo ouvido levando pânico à minha alma, mal tive tempo de dar um pulo para trás.
Aturdido, olhei para o caminhão que já se afastava em disparada, e vi.
Vi que ele transportava um imenso motor de avião, todo chamuscado, sujo de terra, a hélice retorcida.
Que é que eu queria mais? Só um cego poderia esperar dos céus sinal mais evidente. No entanto, já instalado à minha mesa, eu via a hora da partida do avião aproximar-se e ainda não havia decidido o meu destino em favor do trem. Minha mão tremia ao assinar a papelada, mal conseguia segurar a caneta. pois então é verdade - e o suor me escorria pela testa: acordara mesmo para a morte. O poeta tinha razão. O coração parecia querer sair pela boca: não, eu não desistiria. Que seria de mim dali por diante, sujeito a obedecer a qualquer premonição cretina que me passasse pela cabeça? E já me via no trem, pedindo a Deus um sinal de que não haveria nenhum descarrilamento.
Depois de deixar num envelope, dentro da gaveta, as minhas últimas recomendações, despedi-me do escrevente com um olhar de condenado. Já no aeroporto, enquanto aguardava a convocação de embarque desta para melhor, acendi meu último cigarro.Entrei no avião depois do último olhar de despedida para a baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, a Cidade Maravilhosa, o mundo maravilhoso.
Não sei se morri. Sei que foi uma viagem também maravilhosa.

Fernando Sabino
(In: Deixa o Alfredo falar! Ed.Record 1977)

domingo, 6 de janeiro de 2013

A Chave do Enigma

(trechos)
Fernando Sabino
Minas

O TURISTA perguntou ao mineiro por que o Estado de Minas Gerais é conhecido como "As Alterosas".

— Sei não — foi a resposta. — Vai ver que é por causa das mulheres mineiras, que são muito alterosas. Basta uma para dar logo alteração.


CAMINHANDO pelas ruas de São João del Rei. Uma dor de cabeça renitente pede com urgência um comprimido. Se fosse dor de dente, pediria Cera Dr. Lustosa. Ainda há em São João quem se lembre do próprio Dr. Lustosa, criador da milagrosa cera, cujo cheiro característico me vem da infância. Não encontro nenhuma farmácia aberta. Abordo um passante, que me informa polidamente haver uma de plantão perto da Estação Rodoviária.

— E é muito longe a Rodoviária? — pergunto.

— É — responde ele apenas, e prossegue o seu caminho.


SABARÁ é a terra da jabuticaba. De repente, em certa época do ano, Belo Horizonte se esvaziava: todo mundo vinha a Sabará chupar jabuticabas, que eram vendidas no pé. O freguês chupava quantas quisesse, até cair do galho. Só não podia levar nenhuma.

Há algum tempo um velho coronel mineiro, intrigado, perguntava:

- Todo mundo agora está indo para a Europa: o Juca já foi, o seu Chiquinho também, o Zé da Sá Rita está de mala pronta... É tempo de jabuticaba lá?


NO QUE eu depender de informações desses meus conterrâneos, acabo indo parar na casa da mãe Joana. Pergunto a este outro, no posto de gasolina, a distância dali até Diamantina.

— Não é muito perto não. Mas também não é longe — informa ele, sério.

— Quanto tempo vou levar daqui até lá?

— É conforme, uai. Se correr muito, leva pouco, se correr pouco, leva muito.


OS BECOS em Diamantina conservam os nomes da época do ouro e dos diamantes: Beco das Caveiras, das Gaivotas, da Tasca, do Rapacuia, da Paciência, do Pinta-Ratos. Cada um com sua motivação histórica: o do Pinta-Ratos, por exemplo, é homenagem a um pintor que, para se vingar da Irmandade que lhe devia um dinheiro, trancou-se na sacristia da igreja e pintou dezenas de ratos em suas paredes; o da Paciência era usado para despejo do lixo e pelos tropeiros, que ali satisfaziam suas necessidades — paciência houvesse para passar por ali.


SE sou mineiro? Bem, é conforme.

Tudo é conforme: sabe-se lá por que estão perguntando? ? O que é ser mineiro, afinal? Basta ter nascido em Minas? Manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado — tudo isso junto. Experimente perguntar-lhe com delicadeza:

— Como é mesmo o seu nome todo?

Ele responderá, também delicado:

— Fale a parte que você sabe.

Se por sua vez não perguntar:

— Por que você quer saber?


TUDO que me ocorre dizer sobre o mineiro já foi dito, contado e recontado. Só mesmo me valendo mineiramente do que já escrevi sobre o enigma de Minas:

"Dentro de mim uma corrente de nomes e evocações fluindo desde as minhas origens, como o Rio das Velhas no seu leito de pedras, entre cidades imemoriais... Prefiro estancá-la no tempo, a exaurir-me em impressões arrancadas aos pedaços e que aos poucos descobririam o que resta de precioso em mim - o mistério de minha terra, desafiando-me como a esfinge com seu enigma: decifra-me ou devoro-te.

Prefiro ser devorado."

Fernando Sabino
 Trechos extraídos de "A Chave do Enigma", 
Editora Record - Rio de Janeiro, 1999.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O Homem Nu

Ao acordar, disse para a mulher:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.


Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Fernando SabinoAterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

— Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

— Isso é que não — repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

— Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um tarado!

— Olha, que horror!

— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.

Fernando Sabino
Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino.
Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.