segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A Última Viagem

Então,quando fazia a barba, um verso me saltou à cabeça, cortante como a própria lâmina de barbear:
"Acordo para a morte"
Era o poema do Drummond: "Barbeio-me, visto-me, calço-me. É meu último dia"...
O voo estava marcado para as duas da tarde, e ainda eram onze da manhã. A verdade é que até então viajara sempre de avião com o mais leviano destemor.
Só que aquele era o meu dia
Fui para a cidade com o Otto. Acabei lhe confiando meu pressentimento:
- Você acha que esse avião vai cair?
Ele sabia de cor o poema. Como se não bastasse, a primeira pessoa com quem esbarramos, ali na Esplanada, foi o próprio poeta. Otto lhe expôs sem rodeios o meu problema:
Ele vai hoje para Belo Horizonte de avião e está com pressentimento de que o avião vai cair . Você, que entende dessas coisas,que é que acha? Vai cair?
O autor dos macabros versos passou a mão pelo rosto:
- Por que não vai de trem?
Nada me impediria de ir de trem - era o que eu pensava agora já caminhando para o foro, onde trabalhava, para despachar o expediente antes de morrer. Abandonara meus dois amigos numa esquina rindo-se à minha custa - eles ficariam em terra firme. Otto chegara mesmo a despedir-se de mim num comovido abraço, recomendando que desse lembranças a Jayme Ovalle. No momento nem me ocorreu que Jayme Ovalle, além de não morar em Belo Horizonte, já havia morrido. Meu coração palpitava de aflição, antecipando a terrível sensação de queda. Ou não sentiria nada? Se fosse de trem, evidentemente não.
Mas eu não iria desistir do avião e tomar um trem só por conta de um pressentimento idiota.
E a lembrança dos tais versos admiráveis (para quem anda com os pés no chão), sempre me perseguindo. Antes de chegar à Rua Dom Manuel eu já formulava uma prece desconexa: que Deus me desse apenas alguma espécie de sinal.
E lá ia eu meio apatetado atravessando a rua, imerso na minha dúvida, quando uma buzina estridente me apanha pelo ouvido levando pânico à minha alma, mal tive tempo de dar um pulo para trás.
Aturdido, olhei para o caminhão que já se afastava em disparada, e vi.
Vi que ele transportava um imenso motor de avião, todo chamuscado, sujo de terra, a hélice retorcida.
Que é que eu queria mais? Só um cego poderia esperar dos céus sinal mais evidente. No entanto, já instalado à minha mesa, eu via a hora da partida do avião aproximar-se e ainda não havia decidido o meu destino em favor do trem. Minha mão tremia ao assinar a papelada, mal conseguia segurar a caneta. pois então é verdade - e o suor me escorria pela testa: acordara mesmo para a morte. O poeta tinha razão. O coração parecia querer sair pela boca: não, eu não desistiria. Que seria de mim dali por diante, sujeito a obedecer a qualquer premonição cretina que me passasse pela cabeça? E já me via no trem, pedindo a Deus um sinal de que não haveria nenhum descarrilamento.
Depois de deixar num envelope, dentro da gaveta, as minhas últimas recomendações, despedi-me do escrevente com um olhar de condenado. Já no aeroporto, enquanto aguardava a convocação de embarque desta para melhor, acendi meu último cigarro.Entrei no avião depois do último olhar de despedida para a baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, a Cidade Maravilhosa, o mundo maravilhoso.
Não sei se morri. Sei que foi uma viagem também maravilhosa.

Fernando Sabino
(In: Deixa o Alfredo falar! Ed.Record 1977)

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