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quinta-feira, 18 de julho de 2013

Na boca dos vizinhos

Ao chegar à caixa do supermercado, a moça que ali atendia me falou: 
“É verdade que o senhor vai parar de escrever poesia? 
Não faça isso, poeta, por favor!”. Não acreditei no que ouvira. Aquela moça, que mal conheço e passa o dia a cobrar pelas compras dos fregueses, sabe quem sou eu e lamenta que eu não vá mais escrever poesia! “Mas quem lhe disse isso”, perguntei, e ela: “Li naquele jornalzinho que o pessoal distribui de graça”.

Só então me lembrei da entrevista que havia dado a um jornal de bairro e que fora publicada com um título mais ou menos assim: “Gullar diz que não vai mais escrever poesia”.

- Não foi bem isso que eu disse –expliquei à moça da caixa. Afirmei foi que talvez não venha mais a escrever poesia. Não disse que decidi não escrever mais.

Peguei minhas compras e me dirigi para casa, um tanto surpreso com aquela conversa. A moça não apenas deu importância ao que saíra no jornal, como lamentara minha suposta decisão. Jamais pensara que minha poesia interessasse a uma caixa de supermercado. Na minha visão equivocada, às pessoas do povo o que importa são as novelas de televisão. Daí o meu espanto.

Mas o espanto não parou aí. Dias depois, ao atravessar a rua, uma senhora me interpela e me diz que seu filho de dez anos ficara muito triste ao saber que eu ia parar de escrever poesia. “Ele sabe seus poemas de cor.” Expliquei-lhe que não foi aquilo o que disse ao repórter. “Diga a seu menino que a poesia sopra onde e quando quer, ninguém manda nisso.”

E segui meu caminho, feliz de saber que um garoto de dez anos ama meus poemas. Só me resta agora pedir às Musas que me ajudem e não me deixem parar de fazer poemas.

De qualquer modo, vendo que a notícia se alastrara e que, para minha surpresa, há quem deseje que eu continue a escrever poesia, sinto-me na obrigação de esclarecer o assunto. A coisa
é a seguinte: escrever ou não escrever poesia não é coisa que se decida. Logo, não foi o que eu declarei àquela repórter do jornal de bairro.

Na verdade, sempre que termino de escrever um livro de poemas, tenho a impressão de que não vou escrever mais, de que a fonte secou. A primeira vez que isso aconteceu foi com “A Luta Corporal”, cujos últimos poemas datam do começo de 1953.

Ao escrever o poema “Roçzeiral”, em que desintegrava a linguagem, achei que não iria escrever mais. Naquela vez, pelo menos havia uma razão efetiva, já que, ao desintegrar o discurso poético, tornava inviável seguir escrevendo. Mas a coisa se repetiu, anos depois, quando publiquei “Barulhos”, quando publiquei “Muitas Vozes” e, recentemente, ao dar por concluído “Em Alguma Parte Alguma”.

Creio que isso se deve ao fato de que não planejo nada, muito menos meus livros de poemas. De repente, descubro um tema novo, um veio que passo a explorar até esgotá-lo. Isso demora anos, porque, também, ao concluir cada poema, tenho a impressão de que o veio se esgotou.

Sim, pois do contrário, não daria por findo o poema. Mas chega um momento em que o veio se esgota mesmo, percebo que não há mais nada a retirar dali. Dou o livro por concluído e aí vem a sensação de que não escreverei mais. Sim, porque se não descobrir outro veio, não terei o que escrever. E enquanto não o descubro, essa sensação se mantém até que, de repente, um belo dia, a poesia volta a me iluminar.

Os fatos têm mostrado que acabo por descobrir um veio novo e volto a escrever. Pelo menos foi o que aconteceu até então. Sucede que o último poema do meu último livro “Em Alguma Parte Alguma” data de novembro de 2009, e até hoje, três anos e sete meses depois, não voltei a fazer nenhum poema.

Nunca fiquei tanto tempo sem escrever poesia. E não me sinto motivado a escrever. Sempre digo que meus poemas nascem do espanto, ou seja, de algo que põe diante de mim um mundo sem explicação. É essa perplexidade que me faz escrever. Pode ser que, aos 82 anos de idade, já nada mais me espante na vida.

Mal escrevo essas palavras e chega Maria, empregada minha há mais de 20 anos, que nunca leu um poema meu e nunca tocou nesse assunto durante todos esses anos, e me diz:

- Seu Gullar, é verdade que o senhor resolveu não escrever mais poesia? É o que o pessoal anda dizendo por aí.




Texto de Ferreira Gullar,
originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo em 09/06/2013 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

No Limite

O que, afinal, está acontecendo? Em três meses, milhares de motocicletas são roubadas em São Paulo, centenas de residências e transeuntes são assaltados, trabalhadores, mulheres e pais de família são assassinados com uma frequência assustadora. Viver em São Paulo tornou-se risco de morte, é isso? Quer dizer, então, que a cidade está em guerra?

Pior: a cidade está ocupada por bandidos armados que surgem a qualquer momento e em qualquer ponto dela, empunhando fuzis, armas automáticas, decididos a tirar a vida de qualquer um.

Pelo modo como agem, parecem particularmente empenhados em matar, como se isso lhes desse especial satisfação. Matam mesmo quando o assaltado não oferece resistência. Matam para matar, por nada, para nada.

Mas por que razão agem assim? Uma hipótese é a de que estejam drogados, por ser difícil admitir que sejam todos homicidas natos.

Sou da teoria de que o cara nasce poeta e nasce homicida. Digo isso porque sei de gente que em hipótese alguma admitiria tirar a vida de alguém, enquanto outros, a primeira coisa em que pensam, se alguém os ofende, é acabar com ele. Felizmente, raras pessoas são assim.

Daí levantarmos a hipótese de que, se tantos assaltantes matam gratuitamente, é por estarem fora de si, drogados.

Aliás, a droga é um dos motivos que levam aos roubos e assaltos. Com frequência, a polícia, quando prende assaltantes, encontra drogas com eles. Isso explica parte do terror que assusta a cidade, mas não explica tudo.

Não explica, por exemplo, ações criminosas levadas a cabo por verdadeiras equipes de bandidos, munidos de armas pesadas, sofisticadas, obedecendo a um plano minuciosamente traçado.

Quando a polícia chega à sede da quadrilha, depara-se com vasta quantidade de armas, munições e até planos de ação cuidadosamente elaborados.

Esses dados parecem indicar que, fora os bandidos comuns e os drogados, há organizações criminosas, diferentes das antigas quadrilhas do passado: estas de agora se valem de novos recursos teóricos e tecnológicos, que fazem delas organizações eficazes.

Além dos novos meios de comunicação e um conhecimento detalhado do aparelho repressivo, de que dispõem, parece-me haver, em algumas delas, pelo menos, a ação organizada e planejada, apoiada em uma infraestrutura capaz de acumular o produto roubado para vendê-lo, mais tarde, dentro de um esquema que inclui o comércio legal.

Do contrário, como se explica a descoberta frequente de galpões e armazéns cheios de mercadorias roubadas, numa quantidade que tornaria inviável comercializá-las, a não ser com apoio num sistema legal de comércio?

Ou seja, nestes casos, legalidade e ilegalidade se confundem, ou melhor, o comércio legal se alia ao crime e lucra com isso. Trata-se, portanto, de um tipo de criminalidade bem mais ameaçadora, porque capaz de minar a estrutura social e corromper setores inclusive responsáveis pelo combate ao crime, incluindo aí os aparelhos policial e judicial.

Estas são algumas considerações e especulações de alguém que não é especialista no assunto, mas que foi levado a refletir sobre o problema.

Não tenho dúvida de que as autoridades responsáveis pelo combate à criminalidade, em São Paulo e no país, estão igualmente preocupadas e buscando solução para tão grave problema.

Mas isso não basta para tranquilizar as pessoas. Ouvi, outro dia, na televisão, um cidadão afirmar que nem ele nem qualquer membro de sua família sai mais à noite, seja para ir ao cinema seja para jantar num restaurante.

Significa que os cidadãos são agora reféns dos bandidos? Isso se torna tanto mais assustador quando se sabe que o Brasil mesmo, como país, é um dos mais violentos do mundo. Li que se mata mais gente aqui do que na guerra civil da Síria.

É hora, portanto, de o governo, em suas diferentes instâncias, buscar com seriedade a solução desse
problema.

Não por acaso, faz poucos dias, o governador de São Paulo admitiu quanto é grave a situação, tanto que anunciou um programa de combate à criminalidade, prevendo bônus aos policiais que mais se empenharem no combate ao crime, além da ampliação do efetivo policial. Tais medidas não solucionarão o problema, mas, pelo menos, implicam o reconhecimento de quão grave ele é.



Texto de Ferreira Gullar,
originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo, em 02/06/2013.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Me Belisque

Como psicanalista, o dr. Abreu já tratara de muita gente estranha. Um paciente tentara esgoelá-lo e saíra do consultório diretamente para o manicômio. Outro contara em detalhes toda a sua vida, que o dr. Abreu não demorara em identificar como sendo a vida do Thomas Edison. Por isto o dr. Abreu não se surpreendeu quando a primeira coisa que aquela nova paciente disse foi:

- Eu posso não estar aqui.
O dr. Abreu pediu, sorrindo, para ela explicar. Ela disse:
- Eu nunca sei se estou sonhando ou não estou. É por isto que eu estou aqui.
- Então você está aqui – disse o dr. Abreu.
- Se eu não estiver sonhando. Eu posso estar na minha cama, dormindo, e sonhando que estou aqui.
- O que não a impede de falar, e me contar os seus problemas.
- Meu problema é um só. Não consigo distinguir sonho de realidade.
- Muito bem. Vamos supor que isto seja um sonho. Que eu também não esteja aqui, e sim no seu sonho. Podemos fazer a sessão assim mesmo. Com a vantagem que você não precisará pagá-la, já que é tudo um sonho.

- O senhor acha?
- Acho. Deite-se, por favor.
- Aqui, no divã?
- Por favor.


* * * *


O dr. Abreu pediu para ela contar desde quando confundia sonho com realidade. Ela respondeu que desde criança. Ela se lembrava de algum trauma de infância que pudesse ter desencadeado a confusão? Não, não. Na verdade sua infância tinha sido um sonho. Ou então ela sonhara que tinha sido um sonho. Era difícil dizer.
- Você nunca fez um teste para saber se era sonho ou não?
- Como, teste?
- Por exemplo, tentar fazer uma coisa completamente impossível. Voar. Sair voando pela janela. Se você conseguir voar, é sonho. Se não, não é.
- Me belisque.
- Como?
- É um teste. Me belisque. Se eu sentir, não é sonho.
- Desculpe, mas eu não posso beliscá-la. Não posso tocá-la. Seria antiético.
- Só se não fosse sonho. Se fosse, não teria importância. Sonho não tem ética, não tem moral, não tem regras, não tem lógica. Num sonho nada é impossível, nada é proibido. Me belisque.
- Não posso.
- Você não quer me ajudar? Seria um beliscão terapêutico. Para acabar com as minhas dúvidas.
- Desculpe.
- Você prefere que eu tente sair voando pela janela. É isso?
- Não, eu….
- A verdade é que você não tem certeza se isto é um sonho ou não. É ou não é?
- Claro que não. Eu tenho certeza que isto é a realidade.
- Então me belisque, para provar.
- Não.
- Me belisque!
- Não posso.
- Me belisque!
Naquele momento, o dr. Abreu pensou no seu velho sonho de largar a profissão se retirar para um sítio, longe da voz humana.




Texto de Luis Fernando Verissimo,
originalmente publicado no jornal Estadão, em 16/09/2012. 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Dama de Computador

Depois de saber que o Chico Buarque também fica jogando paciência no computador em vez de trabalhar, me senti desagravado. Eu não estou perdendo tempo ou protelando o momento de começar a escrever, quando jogo paciência. Estou, digamos assim, fazendo alongamento do músculo cerebral. Ou distraindo o cérebro enquanto a verdadeira criação se dá em outro nível, no inconsciente. 

E, se isso parecer conversa de vagabundo para se justificar, agora tenho um argumento irrespondível: o Chico Buarque faz a mesma coisa!

Há muitos jogos no meu computador, com vários graus de complexidade, mas até agora só aderi à paciência, o mais fácil. Um dia tentei jogar dama no computador. Eu fui bom em dama quando era garoto. Nunca progredi da dama para o xadrez, talvez pela mesma razão que me impediu de gostar de matemática, entrar em labirintos e pensar muito profundamente sobre os buracos negros.

(Dizem que dama é xadrez para as almas simples)


Joga-se dama de computador não contra o computador, mas contra outro jogador que esteja na linha, movimentando-se uma peça no tabuleiro e esperando que o adversário, em alguma parte do mundo, movimente uma sua. Mas não consegui ir além de duas ou três peças movimentadas.



Estava jogando bem, mas tive que parar.
Até agora não sei explicar minha sensação diante daquele adversário que eu não via, que não sabia onde estava ou que cara tinha, embora estivéssemos, para todos os efeitos, cara a cara. 

Era como jogar com um fantasma.


Mais do que isto: era como ter minha casa invadida por um membro daquela estranha seita, talvez escrava, cuja única função na vida é ficar esperando desafios anônimos no jogo de dama. Era isto: a sensação de uma cidadela invadida e de uma intimidade indesejada cada vez que o outro movimentava uma peça.

Abandonei o dama no meio do jogo e cliquei no paciência. Jogando paciência você às vezes se sente sacaneado pelo computador, que geralmente permite uma vitória a cada cinco ou seis tentativas. Mas pode ao menos ter certeza de que não é nada pessoal.

Crônica-vovô
A Lucinda, que tem quatro anos e meio, frequentemente nos premia com abraços e beijos extemporâneos. Mas também tem seus dias rebeldes, quando a qualquer aproximação de avô ou avó a fim de agarramento ordena: “Me deixem em paz.”

 
No outro dia cheguei perto dela pensando num abraço e, se tivesse sorte, alguns beijos e ouvi seu aviso:



 — Não se atreva.
Não se atreva! 

É claro que obedeci.



Crônica de Luis Fernando Verissimo
originalmente publicada no jornal O Globo em 03/03/2013

domingo, 14 de julho de 2013

O Verniz

A dúvida sobre tratar o acusado pelas bombas em Boston como cidadão americano, com todos os seus direitos respeitados, ou como “combatente inimigo” julgado por um tribunal militar, com direitos restritos e, se condenado, execução garantida, e a proposta de se baixar a idade para a responsabilização penal no Brasil são questões parecidas.

Nos dois casos o que se propõe é um retrocesso, a suspensão de conquistas da civilização para enfrentar exigências extremas: no caso americano o combate exemplar ao terrorismo, que não comportaria filigranas jurídicas, no nosso caso a evidência de que cada vez mais crimes são cometidos por menores, inimputáveis segundo a legislação.

A conclusão nos dois casos é que o processo civilizatório que priorizou a proteção dos direitos de todos, inclusive de criminosos, foi uma conquista da retórica dos bons sentimentos, impraticável diante da crua realidade.

Os casos extremos testam a possibilidade de a razão e a ponderação conviverem com o embrutecimento geral da espécie, e para enfrentá-los retrocedemos ao tempo em que não havia proteção alguma contra a prepotência do Estado ou o erro da Justiça. Quando não retrocedemos ao tempo da reciprocidade bíblica, do olho por olho, de uma atrocidade vingando outra. E o verniz da civilização se espedaça.

Nos Estados Unidos, pelo menos em teoria (ou no cinema) todo preso tem direito de saber seus direitos na hora da prisão: de manter-se em silêncio, de não se incriminar e de ter um advogado. Principalmente depois dos atentados de 11/9, quando o Bush declarou guerra ao terrorismo mundial, os Estados Unidos têm enfrentado o dilema de serem — na sua própria avaliação — a única nação moral do mundo, obrigada a recorrer a todos os meios para se defender do terror, inclusive a oficialização mal disfarçada da tortura.

Os presos sem direitos em Guantánamo são um embaraço permanente para os americanos e tornam hipócrita a condenação dos presos políticos em Cuba. O que fazer para satisfazer a revolta nacional com o ataque covarde em Boston é outro desafio moral para a Justiça americana. Parece que escolheram processar o prisioneiro como cidadão do país. Ponto para a civilização, ou o que resta dela.

No Brasil a questão da maioridade penal ainda está para ser decidida. Talvez o verniz ainda resista mais um pouco.


Texto de Luis Fernando Verissimo,
originalmente publicado no jornal O Globo em 25/04/2013. 

sábado, 13 de julho de 2013

Touradas

A alma ibérica se divide em duas, uma mais caliente e a outra menos. Portugal é uma Espanha ponderada. A divisão está evidente na tourada, essa metáfora para todas as dicotomias humanas. Na Espanha matam o touro, em Portugal apenas o irritam. Ainda não se chegou a um acordo sobre o quê, exatamente, toureiro e touro simbolizam.

A metáfora não é clara. Razão x instinto? Cultura x natureza? Civilização x força bruta? 

Ou — como li em algum lugar — tudo não passa de um ritual de sedução, com o Homem subjugando a Mulher, a Besta Primeva e todos os seus terrores, numa espécie de tango sangrento em que não falta uma penetração no fim?

Ou o toureiro gracioso é a mulher estilizada e o touro resfolgante uma paródia de homem? Enfim, seja o que for que se decide numa arena de touros, os espanhóis terminam o ritual, os portugueses deixam pra lá.

Na Argentina, os líderes militares da época da repressão foram processados e as atrocidades cometidas pela ditadura punidas, ou pelo menos amplamente discutidas. No Chile, aos poucos a história ainda mal contada do governo Pinochet se incorpora à história oficial do país — para ser reconhecida e expiada, para que reconciliação não signifique absolvição e para que nunca mais se repita.

No Brasil, a repressão foi menos assassina do que na Argentina e no Chile — se é que se pode falar em graduações de barbaridade — e ninguém ainda teve que dar muitas explicações. No caso, a simpática irresolução portuguesa desserve a História. Pois, se o touro continua vivo, o que há para expiar? Aqui, até agora, venceu o deixa-pra-lá-ismo.

Já que temos que ser ibéricos, o que é melhor, ser português ou espanhol? 

Os espanhóis parecem viver mais perto do coração selvagem da vida. Os portugueses preferem menos drama e menos sangue.

Voltando ao touro: uma tourada espanhola sempre acaba com o animal morto, com uma resolução. Uma tourada portuguesa pode ser um espetáculo emocionante, mas o touro sobrevive e nada se resolve. E ainda se discute se convém irritar o touro.




Texto de Luis Fernando Verissimo,
originalmente publicado no jornal O Globo em 02/06/2013

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Batalha

Ninguém entendeu quando o Jorge e a Gisela voltaram da lua-de-mel separadose, em vez de constituírem um lar, constituíram advogados. Afinal, a não ser por alguma revelação insólita – um descobrir que o outro não era do sexo que dizia ser, ou era tarado, ou era, sei lá, um vampiro – , nada que acontece ou deixa de acontecer numa viagem de núpcias é tão terrível que não possa ser resolvido com tempo, compreensão ou terapia. E o sexo não poderia ter sido tão desastroso assim.
- Nã, não – disse o Jorge. – O sexo foi ótimo. O problema foi outro.
- Qual?
- Batalha-naval.
O sexo tinha sido tão bom que Jorge e Gisela ficaram uma semana sem sair da cama. Mas o amor, como se sabe, é como marcação sob pressão no futebol. Por mais bem preparados fisicamente que estejam os jogadores, eles não podem marcar sob pressão os 90 minutos.
E foi para preencher os intervalos entre o sexo que o Jorge propôs a Gisela que jogassem batalha-naval. Tinham o que era preciso no quarto, papel e lápis. Qualquer borda reta serviria como régua para fazerem os quadradinhos. Não precisavam sair da cama. E o vencedor poderia escolher a forma como se amariam, depois da batalha.
- Jota 11.
- Água. Bê quatro.
- Outro submarino.
- Viva eu!
Quem passasse pela porta do quarto dos recém-casados e ouvisse aquilo não entenderia o que acontecia lá dentro. Jorge e Gisela, nus sob os lençóis, um atirando seus mísseis imaginários sobre a frota do outro. Gisela, estranhamente, acertando mais do que Jorge. Que já tinha perdido dois submarinos e um cruzador quando finalmente acertou um disparo.
- Agá nove – cantou Jorge.
- Ih… – lamentou-se Gisela – Parte do meu porta-aviões.
- Arrá! – gritou Jorge, triunfante.
- Ele 12 – tentou Gisele.
- Água, água – disse Jorge, ansioso para terminar o serviço no porta-aviões inimigos – Agá dez!
- Água. Dê 13…
- Água. Agá oito…
- Água. Efe dois…
- Água. Gê nove.
- Água. Ele seis.
- Água. I nove!
- Água. Ene…
- Espera um pouquinho. Como, água?
- Água. Você acertou na água.
- Você me disse que agá nove era parte do seu porta-aviões.
- E é.
- Mas eu disparei em volta do agá nove e não acertei mais nada.
- Exatamente. Só acertou água.
- E onde está o resto do seu porta-aviões?
- E eu vou dizer? Engraçadinho! Tente adivinhar.
Jorge estava de boca aberta. Quando ele conseguiu falar, foi com a voz de quem acaba de encontrar uma nova forma de vida e tem medo de provocá-la.
- Deixa ver se eu entendi. O seu porta-aviões não está todo no mesmo lugar…
- Claro que não! Eu divido em quatro partes, e boto uma bem longe da outra. Assim fica mais difícil de atingir.
Os amigos concordaram que seria perigoso ficar casado com uma mulher que esquarteja e espalhava o seu porta-aviões. Por melhor que fosse o sexo, era preciso pensar no resto da vida, quando os intervalos ficariam cada vez maiores. Jorge nem chegou a contar que os submarinos de Gisela não constavam no diagrama de sua frota. Segundo ela, estavam submergidos, podiam estar em qualquer lugar, nem ela saberia onde encontrá-los. Era melhor pedir o divórcio.


Luis Fernando Veríssimo

domingo, 2 de junho de 2013

Uma galinha

Era uma galinha de domingo.
Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.


Clarice Lispector In “Laços de Família”, Editora Rocco

terça-feira, 14 de maio de 2013

Boca Aberta

Quando eu era pequeno, não acreditava em beijo de cinema. Achava que eles não podiam estar se beijando de verdade, nos filmes de censura livre. Aquilo era truque. Me contaram que usavam um plástico, que a gente não via, entre uma boca e a outra. Isso no tempo em que as pessoas só se beijavam de boca fechada, pelo menos no cinema americano. Não sei quem me deu esta informação. Alguém ainda mais confuso do que eu.

Nos filmes proibidos até 14 anos, permanecia a idéia de que nos Estados Unidos o sexo era diferente. As pessoas se beijavam – de boca fechada -, depois desapareciam da tela, tudo escurecia e a mulher ficava grávida. Quando se via o beijo do começo ao fim, não havia perigo de a mulher engravidar. Mas quando as cabeças saíam do quadro ainda se beijando, e a tela escurecia, era fatal: vinha filho. Às vezes na cena seguinte.

Durante algum tempo, só filmes europeus eram proibidos até 18 anos. Você entrava no cinema para assistir a um filme “até 18″ sabendo que ia ver no mínimo um seio nu, provavelmente da Martinne Carole. Não sei quando apareceu o primeiro seio americano no cinema. Mas me lembro do primeiro filme americano com beijo de boca aberta. Com língua e tudo. Bom, a língua não se via, a língua era presumida. Também não era beijo tipo roto-rooter, beijo de amígdala, como no cinema francês. Mas estavam lá, as bocas abertas, num beijo histórico. Depois do primeiro beijo de boca aberta, foi como se abrissem uma porteira e começasse a passar de tudo. Passa língua, passa peito, passa bunda… E em pouco tempo os americanos estariam transando sem parar. Era inacreditável. Americanos na cama, sem roupa, transando como todo o mundo!

Mas guardei o primeiro beijo de boca aberta no cinema americano porque me lembro de ter tido um pensamento quando o vi. Com aquele misto de carinho divertido e incredulidade com que recordamos nossa infância, que aumenta quanto mais nos distanciamos dela. Me lembro de ter pensado:

- Isso destrói, definitivamente, a teoria do plástico.


Luis Fernando Veríssimo

sábado, 27 de abril de 2013

O manjar


Os dois estavam comendo sem falar. Só os dois na mesa, e os dois em silêncio. Aí ele fez um comentário. Só por fazer.

- Não existe nada pior do que risoto frio.

Ela só olhou para ele e continuou mastigando.
Daí a pouco disse:

- Bunda caída.
- O quê?
- bunda caída. É pior do que risoto frio.

Novo silêncio. Depois ela completou:

- E risoto frio tem jeito. É só esquentar.

Mais dois ou três minutos. Ele:

- Bunda caída também tem jeito.
- Como?
- Ginástica. Plástica.

Desta vez o silêncio durou até o fim do jantar. Ela levantou e levou os pratos para a cozinha. Depois, como ela estivesse demorando para voltar, ele gritou:

- Matilde!

Ela apareceu na porta da cozinha.

- Que mais? – disse.
- Sobremesa, ué.
- Não. Que mais? Você já criticou meu risoto, já criticou minha bunda… Que mais?
- EU critiquei sua bunda?
- Eu faço plástica. Me dá o dinheiro que eu faço.
- Tidinha!
- Não seja por isso, Vicente.

Ela desapareceu na cozinha. Ele esperou um pouco e depois foi atrás. Ela estava olhando fixo para uma massa disforme dentro de uma fôrma, em cima do balcão.

- O que é isso? – perguntou ele.
- Manjar branco.

A massa era escura. Ele chegou a abrir a boca para falar, mas decidiu ficar quieto.
Depois, na mesa, comeu o manjar e fez “Mmmmm”.
Ela levantou-se da mesa, pegou algumas coisas no banheiro e no quarto e foi para a casa da Enolina, que tinha comprado uma TV de 29 polegadas. Decidida a não voltar mais.
Aguentava tudo, menos a ironia.


Luis Fernando Veríssimo

domingo, 21 de abril de 2013

Tintim

Durante alguns anos, o tintim me intrigou. Tintim por tintim: o que queria dizer aquilo? Imaginei que fosse alguma misteriosa medida de outros tempos que sobrevivera ao sistema métrico, como a braça, a légua, etc. Outro mistério era o triz. Qual a exata definição de um triz? É uma subdivisão de tempo ou de espaço. As coisas deixam de acontecer por um triz, por uma fração de segundo ou de milímetro. Mas que fração? O triz talvez correspondesse a meio tintim, ou o tintim a um décimo das microcoisas. Há quem diga que não existe uma fração mínima de matéria, que tudo pode ser dividido e subdividido. Assim como existe o infinito para fora – isto é, o espaço sem fim, depois que o Universo acaba – existiria o infinito para dentro. A menor fração da menor partícula do último átomo ainda seria formada por dois trizes, e assim por diante, até a loucura.

Descobri, finalmente, o que significa tintim. É verdade que, se tivesse me dado o trabalho de olhar no dicionário mais cedo, minha ignorância não teria durado tanto. Mas o óbvio, às vezes, é a última coisa que nos ocorre. Está no Aurelião. Tintim, vocábulo onomatopaico que evoca o tinido das moedas. Originalmente, portanto, “tintim por tintim” indicava um pagamento feito minuciosamente, moeda por moeda. Isso no tempo em que as moedas, no Brasil, tiniam, ao contrário de hoje, quando são feitas de papelão e se chocam sem ruído. Numa investigação feita hoje da corrupção no país tintim por tintim ficaríamos tinindo sem parar e chegaríamos a uma nova concepção de infinito.

Tintim por tintim. A menina muito dada namoraria sim-sim por sim-sim. O gordo incontrolável progrediria pela vida quindim por quindim. O telespectador habitual viveria plim-plim por plim-plim. E você e eu vamos ganhando nosso saláriotin por tin (olha aí, a inflação já levou dois tins). Resolvido o mistério do tintim, que não é uma subdivisão nem de tempo nem de espaço nem de matéria, resta o triz. O Aurelião não nos ajuda. “Triz”, diz ele, significa por pouco. Sim, mas que pouco? Queremos algarismos, vírgulas, zeros, definições para “triz”. Substantivo feminino. Popular. “Icterícia.” Triz quer dizer icterícia. Ou teremos que mudar todas as nossas teorias sobre o Universo ou teremos que mudar de assunto. Acho melhor mudar de assunto. O Universo já tem problemas demais.


Luis Fernando Veríssimo

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Aniversário


Ruy e Nara foram para a cama na hora de sempre. Ruy pegou seu livro. Mas a Nara queria conversar.

- Meu bem…
- Mmmmm?
- Sabe que dia é hoje?
- Quinta.
- Do mês.
- Ahn… Dezoito.
- E então?
- Então, o quê?
- Pense bem. É um aniversário.

Meu Deus, pensou o Ruy. Esqueci o nosso aniversário de casamento outra vez, como no mês passado. Mas se tinho sido no mês passado, não podia ser agora. O aniversário dela também não era. Ou era?

- Que aniversário? – perguntou.
- De uma coisa que aconteceu há muitos anos…
- Muitos anos?
- Antes do nosso casamento.
- Não consigo me lembrar.
- No sofá da minha casa…
- No sofá da sua casa?
- Lembrou agora?

Seria possível? A Nara dera para aquilo, agora. Ele forçou um sorriso, fez um ruído indefinido e voltou à sua leitura. Mas ela insistiu.

- Meu bem…
- Mmmmm?
- Vamos comemorar?
- Vamos – suspirou o Ruy, colocando o livro sobre a mesa-de-cabeceira.

Virou-se para a mulher. Os dois se beijaram. Depois Ruy pegou a livro outra vez. Nara protestou:

- Mas só isso?
- Só isso o quê?
- Só um beijo, Ruy?
- Se eu me lembro, naquele dia foi só um beijo.
- Sim, mas…
- Eu não insisti? Não pedi mais do que um beijo? E o que foi que você disse?
- Eu disse “não”.
- Sua exatas palavras. “Não.”
- Mas depois eu deixei, Ruy.
- Dois meses depois. Dois meses e meio!
- Ah, Ruy…
- Não.
- Então vamos comemorar o que aconteceu dois meses depois.
- Eu, nessas, coisas, sou ortodoxo. Aniversário é no dia!


Luis Fernando Veríssimo